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Sexta-feira, Abril 19, 2024
Betina Ruiz
Betina Ruiz
Investigadora, já desenvolveu projetos sobre a Literatura Portuguesa dos séculos XVII e XVIII, a Mexicana do séc. XVII e a Brasileira do séc. XX, professora com mais de 15 anos de experiência, biblioterapeuta dedicada a programas que procuram abranger principalmente leitores idosos e aqueles em alguma situação de vulnerabilidade, autora de textos académicos e ficcionais, pensados e criados ou em parceria com amigos e colegas ou como trabalho individual.

Maior do que a ficção e, ainda assim, quem acredita?

Esta é uma crónica que vem atrasada. Peço desculpa pelo lapso. Numa associação linear, penso em remediar minha falta (justificada!) com um tema também ele atrasado ou, em outras palavras, antigo: o narrador.

📸 Direitos Reservados

Espero que todos nós conheçamos alguém que conta uma história ou com graça ou com leveza, às vezes é possível reconhecermos o bom ritmo com que uma determinada pessoa narra uma história bem escolhida.

A palavra narrador (e também a palavra narração, da mesma família) não é nossa desconhecida, quando muito não seja pelos jogos de futebol transmitidos no rádio e seus narradores que estiiiiiiicam palavras e criam frases de efeito. Pudera! Sabemos do ato de narrar porque desde sempre nós nos valemos dele.

Ele nos atualiza, e nesse sentido ele nos orienta, permitindo inclusive o nosso assalto de turno quando, incomodados com o que ouvimos ou satisfeitos por finalmente participarmos, interrompemos quem está com a palavra e damos, em bom português – por que não? -, a nossa achega ou nosso pitaco… Se quem narra vai bem na sua tarefa, nós de um modo ativo ou passivo estamos dentro da história.

Ter o dom da palavra encanta, é verdade, faz maravilhas diante de uma plateia. Uma busca na web por uma palestra TEDx, por exemplo, resulta em numerosos narradores de mão-cheia. A mim tocam especialmente a assistente social Brené Brown, numa apresentação divertida, quem diria, sobre vergonha e vulnerabilidade.

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E Daniel Cerezo, psicólogo e músico, que emocionado falou sobre pobreza.

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O que esses palestrantes estiveram a fazer, e lembremos que as palestras que eles deram foram gravadas e são vistas por muita gente mundo afora, foi educar, lapidando sensibilidades. Há poucos dias, numa palestra em formato presencial e online organizada pela Universidade Aberta, ouvi o Professor Dr. Nelson Pretto dizer que educação é contágio, pois é troca, é criação coletiva, é processo colaborativo, é laboratório.

Nesse processo educativo, reforço, quem narra tem um papel importante, quem narra capta a atenção e conquista potenciais estudiosos, indivíduos pensantes, almas inclinadas para a partilha e o crescimento. Quem narra com paixão dá e recebe: contagia e será também beneficiado, numa cadeia curta ou longa. Acresce, entretanto, que o narrador está em vias de extinção, porque a sociedade vai-se fechando e fechando para a palavra desse agente, como se fecha para a experiência em si.

Como escreveu Walter Benjamin, que não viu os efeitos positivos de uma rede ou sistema que opera em larga escala para difundir conhecimento, “os combatentes voltavam mudos do campo de batalha” e o “embaraço” para narrar se generaliza, pois são menos refletidas e menos assimiladas as experiências que o narrador tem a comunicar.

Isto posto – o narrar (entreter com qualidade, partilhar, orientar, educar) e a crise dos narradores -, convido a que considerem também um caminho da ficção audiovisual, não muito mais recuado no tempo do que as palestras TEDx que mencionei: se puderem, assistam ao filme Stranger Than Ficction, de Marc Forster, com Will Ferrell, Emma Thompson, Maggie Gyllenhaal, Dustin Hoffman, Queen Latifah e mais.

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Uma voz feminina narra, em tempo real. O realizador escolheu para o papel uma atriz inglesa cujo acento, mesmo para o público anglo-saxónico, além de melodioso, tem mudanças de tom muito eloquentes, muito expressivas. Do que ela fala? Ela é uma escritora de sucesso e é ao mesmo tempo quem se descobriu, afinal, escritora que não controla propriamente sua história! No filme há a figura da agente literária que a auxilia nos momentos de bloqueio da criatividade, há o professor universitário que socorre a personagem (do filme e do livro da escritora do filme) e há, claro, a personagem viva, hilariante, Harold Crick.

É da vida dele que se trata (que rumos a ficção vai dar ao Harold Crick de carne e osso?). Uma narradora de peso é essencial para dar sentido ao enredo do filme e ajusta, assim, o lugar dos escritores, dos outros mediadores culturais, dos médicos, das inúmeras personagens e dos narradores no cenário atual. Ela é tão presente, que o realizador faz com que a personagem ouça a voz dela e, mais do que intrigado, desesperado e com sentido de humor ainda presente, tente explicar a uma psicanalista:

"No, no… It's not schizophrenia. It's just a voice in my head. I mean… the voice isn't telling me to do anything, it's telling me what I've already done. Accurately and with a better vocabulary (…) About me. I'm somehow involved in some sort of story, like I'am a character in my own life but the problem is that the voice comes and goes…"

A profissional que ele consulta, convicta de que ele tem uma doença e ponto, responde sem convicção a uma dúvida dele, dizendo que se ele pretende de facto ouvir outra opinião, que fale com alguém que percebe de literatura e, então, Harold recebe mais uma opinião iluminada:

“The only way to find out what story you're in is to determine what stories you're not in. Odd as it may seem, I've just ruled out half of Greek literature, seven fairy tales, ten Chinese fables, and determined conclusively that you are not King Hamlet, Scout Finch, Miss Marple, Frankenstein's monster, or a golem. Hmm? Aren't you relieved to know you're not a golem?"

Nossas conversas diárias, como as conversas das personagens do filme, podem ser tão mecânicas quanto corretamente limitadas, daí o interesse de quem paira num nível diferente, digamos, e vai largando bocados de significados pelo caminho, como pistas que podemos seguir, como chamadas de atenção. Esse é o narrador.

Alguns de nós, de uns anos para cá, confiam em representantes sem vocação, sem perfil, sem ética… sem o mínimo que se deveria exigir. Os danos estão vistos em mais de um continente. Não seria mais prudente, mais oportuno e mais engraçado, darmos vez a quem tem o saber-fazer, neste caso, aos contadores de história? Não na esfera política… não estou a misturar domínios, propondo contadores de história para o governo; refiro-me aos círculos que connosco dialogam diariamente, tanto quanto os representantes políticos nos chegam, diariamente, sem saber de nós e sem saber da matéria que abraçaram.

Um narrador tem sempre mais generosidade quando entra na nossa vida, tem sempre mais o que dizer e, desgostosos, poderemos fechar o livro, pausar a exibição do filme ou da palestra. O tempo tem estado ao lado deles, como prova, mesmo quando parece, aos olhos dos melhores teóricos, que os narradores já não estão entre nós! Assim espero.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Mais uma belíssima crônica,limpa, precisa e profunda, que além de nos enriquecer com questões interessantes de como funciona a linguagem também relaciona como ela, a linguagem, pode e é fundamental para transformamos nossa vida cotiana e nossas vidas na direção de um mundo colaborativo, desapegado de futilidades que tanto estratificam as sociedades e distanciam as pessoas. Pessoalmente, me agrada, me comove, como a autora relaciona a arte, a linguagem, a cultura e a nossa vida cotiana e nela deposita a idea da construção, vital, de um mundo colaborativo, onde todos possam se sentir em casa e acolhidos, onde quer que estejam. Muito obrigado à autora e aos editores por essa alegria.

  2. Muito obrigada por ler e comentar, Christophe! Nenhum a menos, como o titulo do filme, é o princípio. Se dá certo, já é outra história, mas tem que valer como motor. Gostaria muito que mais e mais pessoas cultivassem as habilidades de que a crónica fala.

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