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Quinta-feira, Dezembro 12, 2024
Betina Ruiz
Betina Ruiz
Investigadora, já desenvolveu projetos sobre a Literatura Portuguesa dos séculos XVII e XVIII, a Mexicana do séc. XVII e a Brasileira do séc. XX, professora com mais de 15 anos de experiência, biblioterapeuta dedicada a programas que procuram abranger principalmente leitores idosos e aqueles em alguma situação de vulnerabilidade, autora de textos académicos e ficcionais, pensados e criados ou em parceria com amigos e colegas ou como trabalho individual.

Voz e luz saem dos livros

A cumplicidade, vínculo feito de compreensão e de acolhimento, é uma das filhas da leitura. Lendo, compreendo não apenas as minhas próprias emoções como testemunha de uma história, mas também compreendo a transitoriedade, representada na linha cronológica do enredo de um livro e, finalmente, compreendo o outro (autor, narrador, personagem, leitor diferente de mim, alguém que conheço e se assemelha à personagem, ao autor, ao narrador, etc).

O professor que lê com gosto e cuidado em sala de aula dá mais vida à turma.

Quando a leitura é feita em voz alta, leitores, ouvintes e livros aproximam-se. Ler para um(a) filho(a) ou para um(a) neto(a), quer ele(a) entenda todo o conteúdo lido ou não, cria esse laço de cumplicidade, essa parceria, essa possibilidade de colaboração. O professor que lê com gosto e cuidado em sala de aula dá mais vida à turma e à sua própria missão de ensinar e aprender.

Na outra ponta do processo, quem está concentrado na audição tem mais condições de entender o texto, por não ter assumido a tarefa de expressar o conteúdo, proferindo palavras, frases, parágrafos em sintonia com a mensagem do texto.

Nesta época pobre em agradecimentos, em explicações na hora da renúncia e em cedências amigáveis, a conquista da cumplicidade é valorosa e, como se vê, pode passar pelos livros.

Há uma particularidade nisto da voz: sermos sonhadores e atentos, a ponto de ouvir a cadeia sonora representada na mancha gráfica impressa nas páginas dos livros, equivale a aceitarmos a entrada no reino de fantasia. A serviço das palavras estão os gestos, movimentos no tempo e no espaço.

Ao darmos ouvidos à voz que nos conta uma história, por meio de um texto bastante elaborado ou despidamente elaborado, somos presenteados com a postura, a expressão, o abrir e o fechar dos lábios, mesmo que numa performance tímida.

Assista às entrevistas dadas por grandes autores, ouça e veja leituras que eles fizeram e apure os ouvidos para a voz que faz eco em você, quando tem em mãos um livro aberto ou uma folha de papel com história impressa ou manuscrita.

Pergunte-se: “- Foi o Guimarães Rosa risonho, aquele da entrevista de 1962 à televisão alemã, quem me falou dos jagunços do sertão brasileiro, em Grande Sertão: Veredas? 1 Não lhe reconheço a voz!”. “- Foi Eugénio de Andrade, de boina castanha e sentado à beira d’água, quem sempre leu para mim “O sal da língua”?”. Quem me dera fosse. 2

Quando eu tinha metade da idade que tenho hoje e já conhecia os versos de “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade, a leitura calma e doce do poema, na voz de uma Professora, foi tão tocante, que desde então nunca caiu no esquecimento.

Aquela voz tomou conta do espaço, algo que eu sinto e gosto de entender como se fosse luz a preencher de maneira difusa o mar, como resultado das algas e do plâncton que alguém, ao nadar, teria movimentado com as mãos.

A experiência de nadar em águas abertas, vendo reflexos de luz na superfície à volta, consegue a proeza de tornar inesquecível e irrepetível um dia já muito bem passado. Ir à praia tem muitos outros encantos, sentar para observar um rio igualmente, mas a contemplação desses pontos de luz ou da luz neon a balançar com as ondas faz com que não seja possível estar indiferente.

Isso se passa com a voz: um texto que pode ser incrível – você se revê nele, ele tem uma história e um trajeto (assenta num autor, numa época e num lugar com os quais você conversa), mas a voz que ajuda a decifrá-lo…! Uma boa voz envolve-nos, puxa-nos para o texto, eleva a qualidade do momento, ela nos transporta. Peço silêncio na casa do sujeito criado por Drummond, casa em que se lia, casa em que se ouvia:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robson Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:

Psiu…Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro…que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

© 2022 Guimarães, agora!


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