No seu Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin), Win Wenders e Peter Handke, apresentam-nos uma cidade devastada, dividida por muros num lento e espartilhado processo de reconstrução física e anímica. Assistida por um batalhão de anjos incorpóreos – cuja curiosidade pela condição humana desperta a vontade (a eles interdita) de sentir a profundidade das paixões, angústias da existência e as dores do crescimento – a cidade-epicentro do século XX cumpre o longo processo de reabilitação a que, provavelmente, todo este mundo se submeterá num futuro próximo. Que reconstrução civilizacional, que muros derrubaremos, que “normalidade” nos espera?
Como a Berlim da Guerra-Fria, o mundo está dividido e pouco simpático, confundido entre a bipolarização, a falência de valores, novas e ameaçadoras Rotas da Seda e, como nas distopias de Orwell ou de Huxley, um futuro sombrio espreita uma humanidade cansada, acomodada, resignada a abrir mão da liberdade em troca das paternalistas e estupidificantes ordem e segurança. Este mundo e este tempo, submetidos ao medo ou a novas lógicas de sobrevivência, não irá ressurgir renovado desta peste se permitir reerguer-se a intolerância ou o ressuscitar dos obscurantismos e perfídias por pequenos “Hitleres” e “Estalines”.
Nestes negros momentos, aguarda-se notícias sobre a linearidade ou circularidade do tempo, a previsibilidade sobre um futuro, não escrito, que gostaríamos de antecipar – a história, por vezes, assemelha-se a um Ouroboros, uma pescadinha de rabo-na-boca cuja lógica não tem que ser a repetição cíclica mas antes uma renovação continua – altos e baixos, em nada aleatórios, despertaram sempre grandes oportunidades mas também graves perigos nas cristas das crises e parece ter sido sempre assim; mas, como dizia Comte, “a História é uma disciplina fundamentalmente ambígua” pelo que, sim, podemos escapar de uma visão fatalista do passado e redescobrir novas e mais positivas rotas de futuro.
Sim, estamos em crise e a desconfiança e desolação encontram ecos no poema de Handke que nos deixa, porém, a réstia de esperança no fundo da caixa; “Quando a criança era criança, achava muitas pessoas belas, mas agora… raramente. A criança imaginava claramente o Paraíso, e agora só consegue suspeitar como seria. Não podia imaginar o vazio, e hoje estremece com a ideia. Quando a criança era criança, brincava com entusiasmo… e agora tal entusiasmo só acontece com muito esforço. Por que todos não vêem, tal qual as crianças, os portos, os portais e as aberturas que existem abaixo na terra e acima, no céu? Se todos os vissem, haveria uma história sem assassinatos e sem guerra”.
Há anjos sobre nós? Talvez até os haja entre nós mas, se calhar, até devemos ser nós, os que sentem nas vísceras a impossibilidade de uma vida sem amor e liberdade (com toda a responsabilidade que acarretam) os que mais se devem esforçar por valores puros e renovados de modo a que se cumpra a esperança, o sonho e a possibilidade de paraíso.
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