Imagino que a esta hora você já saiba dos números que o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa divulgou, baseado em estudo recente, o Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020: “61% dos portugueses não leram um único livro em papel, e, dos 39% que afirmavam ter lido, a maioria leu pouco”.
Caso não tenha ido à mesma notícia que eu, transcrevo da fonte que consultei, a TSF do dia 16.02.2022, mais um fragmento: “na sua infância e adolescência, a maioria dos inquiridos não beneficiou de estímulos à leitura gerados em contexto familiar. De acordo com os dados divulgados, a grande maioria dos inquiridos assume que os pais nunca os levaram a uma livraria (71%), a uma feira do livro (75%) ou a uma biblioteca (77%)”.
Penso que faz sentido buscar uma visão de mundo em que confio e que sempre refiro aos alunos, ano após ano, seja o curso ou mais ligado à Educação ou mais ligado às Artes. Há este crítico argentino, Alberto Manguel, fabuloso naquilo que sabe e faz saber quanto à Literatura e à Cultura – ele que já escreveu também sobre museus, sobre o panorama político e sobre etnias, para explicar o que pretendia acerca da história dos livros e da leitura.
No livro No bosque do espelho, que em Portugal teve a primeira edição em 2009, três anos após a edição original, foi impossível ignorar o conteúdo do capítulo que ele nomeou como “Idade da Vingança”: “No nosso tempo, neste ‘fim de milénio’, creio que o sentimento prevalecente nos obrigaria a chamar a esta época de Idade da Vingança. Agora, há milhões de vozes que parecem dizer cada vez mais alto ‘É a nossa vez’. Não estão a apelar, não estão a tentar convencer, não estão sequer a pedir justiça. Estão simplesmente a abrir caminho, com tochas, até à linha de frente… Combatem a intolerância com a intolerância. E não querem camaradagem”.
É claro que, estando em um livro de 221 páginas, o autor vai além na reflexão, inclusive porque ela está associada a diversos outros pontos de vista muito bem fundamentados que ele expõe. Fique claro, ainda, que não estou 100% de acordo com a formulação dele, que é discutível mas, a meu ver, certeira no principal. Limito-me, embora não totalmente contente, a algumas considerações que pretendem ligar os dados do referido Instituto da Universidade de Lisboa ao olhar de Manguel.
Inflamados – porém cansados -, panfletários dos nossos sofrimentos e impacientes quanto aos alheios (e as minorias que aguardem na fila!), não me parece que entendamos a leitura como antídoto nem como bálsamo, muito menos como alimento (cheguei a pensar em escrever “combustível”, mas qualquer alusão bélica, que arda, é de evitar). Parar uma outra qualquer atividade, para ler. Ouvir um podcast, por exemplo, e os bons andam por aí, e depois confrontar o ouvido com o lido.
Ler em várias fontes. Ler a literatura de ficção que, vejam o exemplo do crítico argentino, é feita por e para gente que está neste mundo, a ler e a (re)escrever este mundo. Ler para assentar poeira. Ler para duvidar. Ler para descobrir. Ler para rir, algo fundamental! Ler para se modificar. Ler para variar…
Vai-se à rua, pois é necessário. Vai-se ao café por gosto. Às reuniões de família ou aos encontros de amigos, embora tenhamos estado mais ou menos privados disso. Está o sujeito em casa, sozinho, e o botão do comando da televisão é apertado. Ou é a loiça que espera na pia, como a roupa no cesto. Enquanto se espera pelo filho que treina, um assunto é repetido à exaustão. Não apenas os algoritmos fazem isso connosco, e me refiro a hierarquizar pela preferência e achatar o nosso campo de visão.
Fomos muito bem conduzidos a este cenário limitado e limitante, quando o mundo é tão mais vasto, quando há tanto para interrogar e livros em abundância. Parafraseando um podcast brasileiro de altíssimo nível (tem uma escritora, justamente, uma psicanalista e um advogado), Quem lê tanta notícia?, é sintomático que queiramos falar muito mais do que ouvir, negligentes com a enorme herança que escritores de diversas procedências nos deixaram.
Entristece que se possa contar nos dedos que lê assim tanto. Finalmente, é importante lembrar de uma outra afirmação do argentino, presente em um livro mais antigo, de 1996, Uma história da leitura: “Nenhuma sociedade pode existir sem a leitura (…) a leitura está na base do contrato social”.
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“Fomos muito bem conduzidos a este cenário limitado e limitante, quando o mundo é tão mais vasto (…)”
que bela síntese, que belo texto!
Como já disse o Drummond:
(…)
Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco
Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração
(…)
Na vastidão do mundo e em nossa grande ignorância, qual o motivo de não ler, não é mesmo?