Sou defensora e praticante do smart working, enquanto modelo assente na capacidade de inovar a forma de pensar e agir de gestores e trabalhadores por meio de cooperação, confiança e capacitação.
A minha primeira experiência como smart worker ocorreu há cerca de cinco anos no âmbito de um projecto inserido na denominada Internet das Coisas, ou IoT (Internet of Things) da Comissão Europeia, proposto por uma empresa energética italiana.
Na altura foi celebrado um contrato escrito, no qual ficou estipulado, para além do prazo, que exerceria a minha actividade fora da empresa, em Portugal, com total liberdade e autonomia decisória sobre os métodos, horários e locais de execução do trabalho. Ficou ainda estipulado que a empresa forneceria um laptop e que assumiria 50% das despesas relativas a conexões e tráfego de dados. A partir desse dia passei a ser tratada como “Cara Associada”.
O modelo de smart working define-se, assim, como sendo concebido segundo a flexibilidade espaço-temporal, baseada na liberdade e autonomia do trabalhador em decidir quando e onde trabalhar. Liberdade e autonomia que são exercidas num contexto organizacional baseado na confiança recíproca e na avaliação dos resultados alcançados. Por outras palavras, o smart-working não é trabalhar a partir de casa, mas assumir um método de trabalho diferente, orientado para os resultados, independentemente de onde e como o trabalho é executado.
Este modelo de organização, particularmente significativo à luz da economia 4.0, foi adoptado com sucesso por várias empresas dos EUA e do Norte e Centro da Europa, muito antes de eclodir a pandemia, graças à redução de custos associados.
Em Portugal tende-se a usar o smart working como sinónimo do que a legislação portuguesa define como teletrabalho no artigo 233º do Código de Trabalho, pelo simples facto de ambos recorrerem a tecnologias de informação e de comunicação. Mas não é. São termos que reflectem realidades diferentes. Desde logo porque o regime de teletrabalho em vigor não passa de uma transferência do posto de trabalho do trabalhador para o domicílio do trabalhador, a tempo inteiro e com direito a visitas de controlo da actividade laboral por parte da entidade empregadora.
O certo é que ambos os métodos requerem uma mudança radical do paradigma produtivo, com implicações que vão muito além das simplificações que têm sido frequentemente apresentadas pelos apologistas do smart working e do teletrabalho.
Chega a ser patética a exaltação das virtudes associadas a estes modelos produtivos, sobretudo quando visam apenas o teletrabalhador na conciliação para a vida privada com a vida familiar, e enquanto opção económica para trabalhadores e empresas, assim como meio de combate à desertificação do interior e de emissões de CO2. A perspectiva crítica da maior parte dos especialistas e analistas gira, por isso, em torno da regulação em sede dos direitos dos teletrabalhadores, nomeadamente por parte dos sindicatos que vêem no smart working/teletrabalho um instrumento de exploração dos trabalhadores.
Sucede, porém, que se tal como referi no meu artigo anterior o teletrabalho empobrece-nos, então o smart-working poderá empobrecer-nos muito mais, na medida em que o seu impacto futuro será nacional e internacional. E porquê? Debrucemo-nos primeiro sobre os números recentes disponíveis.
De acordo com o EUROSTAT, entre 2018 e 2020, a média europeia de smart workers no sector privado e público passou de 5% para 40%, com a Suécia e Holanda a liderarem o ranking.
Num relatório publicado em Setembro, a International Data Corporation prevê que em 2022 cerca de 65% da força total de trabalho na União Europeia será constituída por smart workers e de 60% nos EUA até 2024.
Face a estes dados, e tendo em conta que são cada vez mais as empresas e decisores políticos que apregoam que o trabalho à distância é um caminho que se afigura irreversível – que veio para ficar – torna-se claro que podemos vir a estar perante uma potencial convulsão económica e não perante uns meros “ajustes” e optimizações, como muitos alegam.
Eu até entendo o deslumbramento pelo smart working generalizado do ponto de vista das empresas. A redução de custos é inequívoca. Mas a questão de fundo é outra: qual o impacto que a introdução deste novo paradigma – e a consequente economia digital – provocará a nível tributário, imobiliário e até das PMEs?
Vejamos. Sendo a mobilidade o elemento que melhor caracteriza o smart-working serão, sem dúvida, as grandes empresas que melhor poderão beneficiar deste novo paradigma de produção, pela simples razão de se encontrarem melhor estruturadas. Foram elas as primeiras a adoptar de forma massiva este método no início da pandemia, enquanto que as PMEs tiveram (e têm) grandes dificuldades em termos tecnológicos.
Portanto, a mobilidade permite aos grandes players mudar facilmente as suas sedes dos centros urbanos para zonas periféricas ao longo de um grande eixo rodoviário, reduzindo, de modo significativo, os custos de arrendamento ou de manutenção. Permiti-lhes, também, “pescar” smart workers espalhados pelo país, o que poderá vir a ser benéfico para minorar os efeitos da desertificação. Num mundo ideal seria assim, porém, na realidade, o mais certo é que todas as grandes empresas se desloquem para onde a mão de obra é mais barata, provavelmente para o Médio Oriente e será lá que passarão a pagar impostos e onde, eventualmente, contratarão trabalhadores. Afinal, ao contrário do teletrabalho, o smart-working permite “pescar” onde se quiser, seja numa vila ou cidade próximas ou nas Maldivas. Teoricamente não faz qualquer diferença.
E o que poderá acontecer às PMEs que produzem, quase exclusivamente, para as grandes multinacionais? Provavelmente irão ser crucificadas no altar do smart working, originando uma hecatombe na receita tributária, tanto a nível das empresas como por via dos impostos pagos pelos seus funcionários, que obviamente acabarão na rua.
Se a isso se somar o colapso na procura de escritórios para comprar ou arrendar, que poderá chegar a cerca de 50%, segundo o El País, a queda abrupta na procura de imóveis residenciais e a fuga para o interior dos profissionais melhor qualificados, o leitor consegue imaginar em que se poderão transformar as cidades que albergam grande número de activos económicos? Em grandes guetos, como Detroit.
Este fenómeno já está a acontecer em cidade como Londres, ao ponto de levar o prefeito, Sadiq Khan, a implorar às empresas pelo regresso dos seus funcionários aos escritórios.
Não quero com isto dizer que devemos ficar ancorados em modelos de organização laboral obsoletos, pelo contrário: o smart-working é uma excelente oportunidade para se repensar na organização empresarial, para melhorar a produtividade e para humanizar o trabalho. Trata-se de um caminho de inovação e, por conseguinte, de participação.
Precisamente por isso é que o tema merece um debate público preliminar e uma análise minuciosa sobre os seus efeitos colaterais e repercussões, assim como planos de acção para a requalificação dos espaços urbanos, antes de apregoarem aos quatro ventos a adopção em massa deste novo método É sintomático que não o tenham feito. É inenarrável a incapacidade dos poderes públicos para engendrar um planeamento antes de se começar a sentir os efeitos da crise.
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