Não verteu uma lágrima mas… “chorei por dentro”, confessa Paula Oliveira, a vereadora da acção social que andou “no terreno”, na ajuda aos mais desfavorecidos e vulneráveis. Não cansou mas esgotou muita da sua energia, em etapas de trabalho, muito mais longas que as habituais, despachando, a partir de casa, num confronto contra o tempo… já em plena madrugada! Não se queixa do esforço despendido, nem da função exigente, que agora acalma, depois de um período sucessivo de reuniões, visitas aos lares, sempre de telefone em punho, despachando os pedidos de ajuda que lhe deixavam os serviços técnicos da Divisão da Acção Social (DAS). Foram tempos difíceis, que viveu em plena crise da Covid-19. Paula Oliveira foi a imagem da solidariedade social municipal, sempre na primeira linha, com um grupo diversificado de “agentes” prontos para todas as tarefas. O seu exército era formado por alguns funcionários da cooperativa Fraterna e os técnicos da DAS e da Casfig. Eram mais mulheres que homens a dar a cara neste período de emergência social. Nenhum cidadão ouviu um “não” da estrutura que prestava a primeira ajuda, com uma refeição, um cabaz de alimentos, ou apoio financeiro para pagar água, luz ou gás.
GA! – A vereadora, para além de coordenar o serviço municipal de apoio social, também andou “no terreno” como se diz na gíria…
PO – Apenas exerci a minha função de vereadora de uma área mais sensível e trabalhosa nesta situação de pandemia.
GA! – Mas foi para além da rotina habitual!
PO – Claro, como o presidente e vereadores, estivemos ao serviço nas 24h do dia.
GA! – Viveu ou sentiu casos dramáticos, num contexto social de
perda de rendimentos da população, de pessoas “sem-abrigo”, de idosos privados da vista da família e isolados? Foi duro?
PO – Na área social há sempre casos de dramas invisíveis e de falta de qualquer coisa. Neste contexto, o drama pode ter aumentado porque ninguém sabia como lidar com uma situação que nos isola e confina, e nos despe do que era o nosso modo de vida. Andar “no terreno” a acompanhar a implementação das medidas e apoios do Município, ainda que com as medidas de protecção indicadas, sabendo que podia estar com alguém infectado, não foi fácil.
GA! – Experimentou o medo?
PO – Não tive medo mas muito receio… seria irresponsável não o sentir porque ninguém sabia onde estava o vírus. E tinha de proteger a minha família – pessoas de risco – para onde não podia, de facto, levar o vírus. Andei sempre com este medo apesar da tranquilidade que o uso de equipamentos de protecção individual e os cuidados de higiene pudessem acrescentar alguma tranquilidade.
GA! – Esse receio, não a impediu de sair do gabinete?
PO – Não virei a cara à luta mesmo sabendo que havia riscos associados, de lidar com pessoas infectadas que também não sabiam se estavam. Doeu ver famílias que não podiam despedir-se de um dos seus quando não resistiam ao vírus. Nestes casos, de nada vale uma palavra porque a perda é muito maior. Também doeu, ver rituais de desinfecção das casas, nestas situações, de não poder fazer o luto, com a família inteira, assistir a funerais, com número limitado de pessoas.
GA! – O que mais a impressionou?
PO – Ver e ouvir o drama de famílias, na hora do funeral, mesmo com poucas pessoas. A dor que sentiam, do dizerem “não pude despedir-me da minha mãe”, então em casos que morriam marido e esposa, sentir quão duro era não chorar a morte, dar um abraço de conforto, como estávamos habituados, na capela mortuária. Foram tempos difíceis, de emoção contida e de dor interior.
GA! – Não verteu… uma lágrima?
PO – …(pausa)… não, não verti uma lágrima mas…. (pausa)…. chorei por dentro, o drama destas famílias, que podia ser o nosso drama. Nada do que é humano me é estranho mas há sempre situações em que o que está em causa verdadeiramente é a dignidade das pessoas. E se eu perder essa sensibilidade ou deixar de chorar por dentro é porque estou a mais neste lugar.
GA! – Foi um tempo e um ritmo alucinante?
PO – Ninguém estava preparado para este drama… que a morte provoca e que se tornou ainda mais drama…
GA! – Sentiu-o como um tempo especial?
PO – Acho que foi um tempo psicológico… (pausa) …um tempo que exauriu as nossas forças, absorveu toda a nossa energia.
“Tentei transmitir uma mensagem de tranquilidade, mostrando que estávamos ali para ajudar em tempo de desespero, de enorme pressão emocional…”
GA! – Mas reagiu a este infortúnio?
PO – Nunca perdi a tranquilidade, a alegria e a esperança… que é fundamental, para quem está na área social… Tentei transmitir uma mensagem de tranquilidade, mostrando que estávamos ali para ajudar em tempo de desespero, de enorme pressão emocional. E não esquecendo que também somos humanos, temos as nossas famílias, temos os nossos problemas, e manter esta força, foi desgastante. Também porque vivemos muito o “just in time” em que tudo é para já, agora. É o tempo do “teve que ser” que abala os tempos políticos, normalmente associados à duração dos mandatos.
GA! – Nunca desviou a sua atenção, para outras áreas?
PO – Neste contexto, a nossa atenção estava em evitar a propagação da doença, atender os mais frágeis. E continuar a trabalhar naqueles projectos que são essenciais aos desígnios do Município, no desenvolvimento social por onde passavam também as respostas sociais. Em Guimarães, toda a estrutura do desenvolvimento social e as medidas de apoio, revelam que o Município tem sido pioneiro, prepara-se e antecipa problemas, concretiza projectos, e consolida a rede social.
GA! – Esse chorar por dentro é igual a emoção?
PO – O ser humano é emocional e por nós estamos aqui para trabalhar em prol de uma sociedade mais justa equitativa e inclusiva…ajudar os mais frágeis, é trabalhar para o bem comum.
GA! – Também andou pelos lares, foi ao hospital?
PO – O nosso acompanhamento foi sempre muito presencial e próximo e antes das proibição de visitas. Depois foi acompanhar, passo a passo, problema a problema, resolver as suas preocupações. No hospital, o que fazíamos era ajudar as pessoas que faziam testes a terem transporte, feito pelos Bombeiros, que estiveram sempre prontos para todas as necessidades.
GA! – Houve algum dia, nesta tormenta que tenha exigido um maior esforço?
PO – …muitos e não um, foi algo comum à estrutura da Protecção Civil, do presidente da Câmara, aos vereadores, ao comandante dos bombeiros, aos funcionários. Desde o dia 8 de Março, foi sempre a agir… agir… estar no terreno, muito esforço – mas eu não me queixo – tempos nunca antes vistos, com menos horas de sono, menos descanso, mais agitação, menos rotina.
GA! – Não há registo de casos excêntricos, para além dos que se verificaram no Lar de S. Francisco e em S. Clemente de Sande?
PO – Só esses mas completamente resolvidos, na hora. Nos cerca de 27 lares de Guimarães, todos devemos registar o trabalho extraordinário, das equipas técnicas e do pessoal. Com as normas da DGS e da Segurança Social, por vezes, com antecipação, os planos de contingência foram cumpridos. Isso permitiu que os idosos só tenham sentido a falta dos seus familiares nos dias das visitas habituais. Se olharmos para o que aconteceu no país, os lares merecem que se elogie o seu trabalho, desde os corpos sociais e técnicos aos restantes trabalhadores, que aceitaram trabalhar 14 dias seguidos, em 12 horas por dia, dormindo nas instalações, privados das suas famílias.
“Há muitos elogios merecidos aos profissionais de saúde dos hospitais. Mas também temos outros heróis, verdadeiros, anónimos e pessoas simples…”
GA! – Também esses são heróis?
PO – Há muitos elogios merecidos aos profissionais de saúde dos hospitais. Mas também temos outros heróis, verdadeiros, anónimos e pessoas simples: são as pessoas que trabalham nas cozinhas, na limpeza, na lavandaria, são os assistentes operacionais que dão banho aos idosos, aos assistentes técnicos, de todos os lares. Para todos eles, a minha homenagem pela sua dedicação e por terem contribuído para preservarem a vida dos nossos seniores, todos eles exemplos de vida para nós, para muitos pais e netos. Eles defenderam o direito à vida… de quem pode estar no fim da vida, e que partirão por ordem da natureza e não pela imposição de um vírus. Foi um trabalho abnegado, e difícil porque muitos desses trabalhadores, tinham em casa filhos, maridos e outros familiares com quem apenas falavam pelo telefone. Isso é que deu estabilidade à vida dos nossos seniores.
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