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Quinta-feira, Março 28, 2024
Betina Ruiz
Betina Ruiz
Investigadora, já desenvolveu projetos sobre a Literatura Portuguesa dos séculos XVII e XVIII, a Mexicana do séc. XVII e a Brasileira do séc. XX, professora com mais de 15 anos de experiência, biblioterapeuta dedicada a programas que procuram abranger principalmente leitores idosos e aqueles em alguma situação de vulnerabilidade, autora de textos académicos e ficcionais, pensados e criados ou em parceria com amigos e colegas ou como trabalho individual.

Em toda palavra encantada mora um ato de amor

Nas memórias mais antigas que guardo, encontro a música. Antes de gostar da palavra impressa e da palavra lida, eu gostava da palavra cantada.

Minha mãe tinha estudado piano por anos e fazia as tarefas de rotina, cantando. Principalmente Elis Regina, mas também Nat King Cole e Emílio Santiago (já falecido, foi um cantor de vozeirão macio e afinadíssimo).

Meu pai gostava mais da Gal Costa e do Paco de Lucia, por isso ouvíamos “Entre dos aguas” vezes sem conta.

Muito mais tarde percebi que o meu pai também é o homem das novidades – se eu mostrar Andy Palacio, ele sorri; se numa das vindas dele a Portugal eu comprar bilhetes para ouvirmos o António Zambujo, ele aceita.

Houve uma época, antes dos meus 10 anos, em que alguém, provavelmente ou pai ou mãe, colocava para tocar uns discos de vinil dos Beatles. Na mesma época, mas em casa dos meus avós, fixei os sambas, porque o meu avô conhecia pérolas e elas giravam na vitrola. Fiquei eu a conhecer Clara Nunes e Martinho da Vila. O repertório da minha avó era diferente e só vim a valorizá-lo quando fomos uma vez ao teatro, assistir a uma montagem sobre a vida de um intérprete que ela admirava.

Como a abertura e a diversidade para a música eram reais, pude fazer os meus próprios pedidos e, então, muito cedo eu ganhei um disco da Beth Carvalho a cantar marchinhas de Carnaval e ainda um dos Carpenters, uma compilação, se não me engano. Que delícia de sensação. De algum modo repetiu-se quando, com meu primeiro salário, comprei um CD do Milton Nascimento e um da Elis.

A música significava tanto, em família, que até vi, pelo exemplo materno, que se ninguém oferece-nos uma prenda quando desejamos, mais vale pegar numa caneta esferográfica e na capa de um disco – e havia capas lindas para isso, sem dúvida – e fazer uma dedicatória sincera, de si para si! 

Cantar também era comum nos intervalos da escola. Entre as minhas amigas de longa data, uma diz que ainda se lembra de eu cantarolar um refrão do Lou Reed que eu suponho que seja

‘Hey, baby take a walk on the wild side
And the colored girls go
Doo do doo do doo do do doo…’

De alguns amigos eu recebia cassetes e gravava cassetes em retribuição. Tom Jobim, Cole Porter, um grupo de jazz de São Paulo, fantástico, os Nouvelle Cuisine (Carlos Fernando, que era o vocalista naquela altura, é de longe uma das minhas vozes preferidas).

Os videoclipes? Viciei-me por volta dos 14 anos: De la soul, A tribe called quest, Neneh Cherry. A adolescência passada ao lado de muita gente festiva pode ser musical.

Algum som sempre permaneceu a vibrar cá dentro, mesmo quando o meu gosto pessoal foi censurado.

Algum som sempre permaneceu a vibrar cá dentro, mesmo quando o meu gosto pessoal foi censurado. Recordo-me de pular tanto ao som de This is the day, que em público mesmo, ali no meio da bagunça, uma das minhas irmãs, amparada por uma prima mais velha, ordenou que eu parasse de me mexer. O som grave era o de Matt Johnson, o vocalista do The The, e esse sem a menor sombra de dúvida permanece. Assistir ao filme germano-turco Contra a parede, de 2004, e entender a fala de uma personagem que citava uns versos dele ao se explicar para outra personagem soube-me muito bem, acreditem.

Ao meu filho, apresentei Thriller tão logo achei que ele não morreria de susto. Para meu deleite, começou a imitar a coreografia toda e um dia nós fizemos uma gravação impagável, em frente ao chafariz dos Jardins do Carmo, no centro da cidade de Guimarães. É interessante que às vezes ele vem, telemóvel na mão, mostrar uma música que descobriu e guardou numa playlist e eu o confronto com a original, em muitas situações mais rica do que as versões seguintes. É difícil fazê-lo acreditar que alguém esvaziou uma música, mas ele ainda vai entender a jogada…

Nesta fase da minha vida, quando eu volto a uma música pela memória afetiva e pelo bom casamento entre mensagem e contexto, diversas vezes bato à mesma porta. Por ela, dentro desta crónica pontuada por referências com seu quê etário, social, local, familiar etc introduzo, só mais alguma coisinha.

Vem do cancioneiro popular brasileiro, é coerente com a produção do seu compositor e cantor, que em alguns sucessos nos lembra precisamente do que a vida deve ser

‘Sempre desejada 
por mais que esteja errada’

São dois dos versos de “O que é, o que é” e são da poética do Gonzaguinha, filho de outro cantor e compositor famoso. Em outra composição, ele lança um grito que com coragem e peito aberto sempre teríamos deixado sair, quando muito não fosse pelo arranjo linguístico despretensioso e coloquial que infelizmente é mal visto entre os puristas que talvez, afinal, entendam menos de língua do que imaginam

‘A gente quer valer o nosso amor 

Tão essencial quanto esse é o verso da mesma música, que faz a gentileza de nos prender a duas palavras de ouro. Gostava que fossem ouvidas como o som saído de um búzio bem grande, segurado num lado do rosto, com suavidade

‘A gente quer carinho e atenção’

Penso que se está marcado no calendário um Dia Mundial da Poesia, 21 de Março, importa reconhecer que quando a poesia inunda uma música – está na letra, está na melodia, está na forma como um músico toca seu instrumento e está nas imagens que nos inspira – está a serviço do amor. A todos ensinam, a todos educam, à dignidade e ao crescimento de cada um dizem respeito, amor e música. Com música as crianças se sacodem, os adolescentes pensam que o mundo é invenção deles, os adultos relembram e a poesia, como escreveu e cantou Chico Buarque de Holanda, faz-se presente até entre os que nada esperam

‘Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão’

© 2022 Guimarães, agora!


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4 COMENTÁRIOS

    • Muito obrigada, Eveline!

      Você, eu, qualquer outra pessoa que leia esta crónica tem pelo menos uma música para substituir as que eu escolhi. A riqueza é uma certeza na música como na nossa história pessoal. Essa característica me encanta e me fez escrever.

  1. Belíssimo texto! Viajei através de suas afinadíssimas palavras para a época da minha adolescência, quando ouvia rádio e curtia a voz dos radialistas, além das músicas claro!

    • Obrigada, Ida!

      Eu ouvi rádio no início da adolescência, depois houve uma época longa em que não fui ouvinte. Já voltei a essa companhia e não me arrependo. A música acrescenta muito significado à nossa experiência no mundo.

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