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Quinta-feira, Dezembro 12, 2024
Betina Ruiz
Betina Ruiz
Investigadora, já desenvolveu projetos sobre a Literatura Portuguesa dos séculos XVII e XVIII, a Mexicana do séc. XVII e a Brasileira do séc. XX, professora com mais de 15 anos de experiência, biblioterapeuta dedicada a programas que procuram abranger principalmente leitores idosos e aqueles em alguma situação de vulnerabilidade, autora de textos académicos e ficcionais, pensados e criados ou em parceria com amigos e colegas ou como trabalho individual.

“…E a vida como que a bater à nossa porta” ou “Recomeçar – do que restou de uma paixão”

Talvez exista um caminho a percorrer – com as necessárias variações, desdobrando-se portanto em caminhos -, para termos encontros felizes, que deixam marcas boas como as oportunidades de parceria, de aprendizado, de prazer, esse e aquele date que eu poderia guardar na galeria do “pra chamar de seu”.

Como nem na melhor ficção o caminho costuma ser fácil, nem convém que ele assim o seja, há guias ou, por outras palavras, conselheiros. Eles são os sexólogos, os psicólogos, até os escritores são guias. Doris Lessing e Gabriel García Márquez tinham o que dizer sobre os relacionamentos amorosos e eu me senti tocada pela forma como o disseram em Amor de novo e Do amor e outros demónios, respectivamente. Sem contar o amor nos tempos do cólera, com o desejo sem fim e a longa espera de Florentino Ariza…

Nesta época, muito mais comum do que os guias, no entanto, são os próprios homens e mulheres que de maneira atabalhoada criam perfis em aplicativos de relacionamento, sem atenção às habilidades sociais relevantes na vida amorosa. Eu até percebo… afrouxámos o laço, afastando-nos dos bons comentaristas, dos bons narradores, dos guias! Ficam sem efeito as pistas deixadas por eles no caminho e acontece que pistas costumam tornar mais nossa a leitura deste mundão em movimento. Ao invés de ganhar uma aptidão, neste caso a de identificar sinais de navegação em águas agitadas, aceitamos o roteiro que alguém entrega em nossas mãos e seguimos com uma falsa confiança em processos que nem de longe entendemos e abraçamos.

Não sendo comum em Portugal, julgo eu, há, ainda, quem arrisque um speed dating ou um blind date ou quem saia com um(a) parceiro(a) novo(a) indicado por um amigo que realmente sabe do que está a falar e fala de coração, para nos ver aconchegados por um sentimento genuíno e, se tivermos sorte, leve.

A performance do caminhante, como eu a enxergo, fica a depender da ajuda que ele (não) aceita, dos objetivos que assume, do autoconhecimento em geral e da sensibilidade para estar, pois é preciso muito treino, conversa após conversa, susto após susto, desejo seguido de desejo, para não desistir e nem tratar o outro, o novo em nossa vida ou o estranho (a querer, no fundo, pelo menos uma parte do que nós queremos), como uma receptáculo das nossas questões, às vezes mal digeridas e bem embrulhadinhas.

Se reconheço em mim dificuldade para ver a cultura portuguesa como exuberante no campo das relações afetivas que envolvem diálogo, corpo a corpo e outras formas de entrega, tenho a certeza de que muitos de nós têm um aparelho para receber os programas de televisão e que entre grupos de amigos é pacífica a troca de informação sobre séries, filmes, realities etc. Numa mistura de entretenimento e instrução, além dos podcasts que pipocam (se quiser rir, vá a É nóia minha?, do Spotify, e ouça sobre maus dates, com Camila Fremder), os canais de televisão oferecem opções a quem quer absorver algum conhecimento sobre relações afectivas adultas ou quase isso: Love on the Sprectrum (Netflix), Dating around (Netflix), Heartbreak High (Netflix) e Sex Education (Netflix), Married on the first sight (SIC Mulher), Quem quer namorar com o agricultor (SIC) e Indian Matchmaking (Netflix), The Bachelor (?), Temptation Island (SIC Mulher) e o engraçado Undressed (SIC Mulher).

É complicado ir além da sinopse desses programas, para dar-me a entender a quem ainda não os viu. Alguns deles põe o telespectador a acompanhar as fases de um casal ou de um(a) solteiro(a), outros mostram percursos mais curtos, em que o nível de compromisso é inversamente proporcional ao nível de exposição. Dating around foi uma agradável surpresa, porque vi num episódio uma paulistana mais ou menos da minha idade a ter ótimos encontros com homens jovens e de boa conversa, formando pares nada constrangidos (algo do que eu espero encontrar no filme com Emma Thompson, com estreia prevista em Portugal hoje). Em Undressed, quem se dispõe a conhecer alguém sabe que estará acompanhado de um(a) desconhecido(a) e ambos quase nus numa cama experimentarão beijos, abraços e olhos nos olhos marcados pelo tempo do relógio, a fim de testar o interesse e a compatibilidade; havendo química declarada por ambos, as luzes se apagam, as imagens deixam de chegar até nós e o casal ganha mais uns minutos, então a sós. Eu particularmente acho bem mais autêntica essa experiência do que a de Love is blind, que aposta na “criação” de vínculo porque um e outro não se podem ver, uma vez que estão limitados ao ouvir e ao falar. Estão resguardados por trás de um vidro fosco, falam e se movem livres do impacto que a própria imagem projetaria.

Quando percebi que precisava escrever sobre essa caminhada assistida pela indústria do entretenimento e também quando decidi pesquisar, tomando consciência de que “o desejo é imperativo, é algo que se impõe” e voltando a alguns livros de ficção, comoveu-me e me fez rir Love on the Spectrum. O que me comoveu?

Se os autistas dão um baile, a voz abre o palco na medida certa.

A maneira de narrar as várias histórias foi uma delas. Aqui, aproveito o mote de Fernando Andrade Grostein e Fernando Siqueira, autores do documentário “Quebrando mitos – A frágil e catastrófica masculinidade de Bolsonaro”, pois foi ao ver esse material tão rico que ouvi melhor a voz, neste caso a que apresenta os diversos programas sobre dates e casamentos e aventuras sexuais (além de ouvir de Jean Wyllys a definição utilizada entre parêntesis, no parágrafo anterior a este). Em Love on the Spectrum, a voz feminina que nos conecta aos jovens que procuram amor é doce e tem um ritmo que respeita a profundidade do que está a ser mostrado. Não faz chacota, antes pelo contrário amacia ainda mais as cenas, sem recorrer à sensualidade. Se os autistas dão um baile, a voz abre o palco na medida certa. A voz é tão terna quanto as conselheiras que sentam com os jovens e conversam sobre expectativas, abordagens na comunicação e persistência. Num das versões do programa, a especialista é Jodi Rodgers, cujo papel é desempenhado também na conta que ela mantém no Instagram, no outro, é Jennifer Cook.

Comoveu-me igualmente a forma como os pais de autistas mostrados nos episódios do programa televisivo orgulham-se de os filhos poderem namorar e da beleza vista nos namoros deles. Diante disso pergunto-me qual é a frequência com que pais de neurotípicos (quem apresenta um neurodesenvolvimento considerado normal) podem dizer a mesma coisa que os pais entrevistados neste programa. Entre mentiras pequenas e grandes, dificuldade de gerir o desgaste que as relações sofrem e franca brutalidade no trato, a mim parece que muitos mais pais têm motivo de tristeza que de orgulho, quando vêem como os filhos e as filhas entram nesse campo que pertence à vida adulta. E talvez nem verbalizem essa perceção… Ouço muitos a falarem daquilo que o documentário dos Fernandos também fala: da impossibilidade de aceitar o homossexualismo, algo que não está presente entre os pais de autistas que podemos ver no programa da Netflix. Na verdade há vários bissexuais entre os que apareceram em Love on the Spectrum e não é evocado, para a nossa sorte, qualquer discurso de repreensão. Entre eles fiquei com a impressão de que o estranhamento não corre solto. E para mim essa foi uma boa surpresa. É uma pequena amostra, eu sei, mas é reconfortante.

Comoveu-me, ainda, que os autistas entrevistados assumam-se como indivíduos em busca do amor verdadeiro, alguns apoiados na consciência de que nunca se apaixonaram: eles aceitam praticar (aproximam-se, conhecem-se, tentam uma conexão, dizem adeus, se for esse o melhor a fazer) e não enveredam pelo que é abundante nos aplicativos de encontros mais populares entre pessoas fora do espectro (alguns do espectro se arriscam nas apps também). Isto equivale a dizer que eles não fingem, eles são. Nada de joguinhos, nada de ouvir e agir como se não tivessem ouvido, nada da deselegância com que se aborda um partido em potencial nas apps. Eis o avesso da moeda, no caso das pessoas do espectro: fazem elogios a partir de um olhar genuíno e não de um repertório viciado; dão incentivos simples e encorajadores (quem puder, veja a cena em que Ronan, um rapaz autista apaixonado por máquinas, congratula Katie, por causa de uma corrida de carros virtual); aconselham uns aos outros, para que a busca de um(a) parceiro(a) não seja vazia de significado (lembro-me de “não force o amor, deixe ele vir até você”). Aconselham até quem está a ouvir e a ver o depoimento que eles dão para a câmera: “Queremos depender uns dos outros e esforçamo-nos por uma vida sustentável”. Declaram-se: “Eu me sinto acolhida”, “Estou mesmo feliz”.

Aliás, em Love on the Spectrum, intrigou-me a capacidade de definirem a eles próprios (“Eu amo ser estranho”, “Eu sou um pouco trivial”) sem a pretensão de ganhar a parada com um truque, um trunfo, uma característica que não é deles. Eles estão alertas para as possíveis rejeições, para o preconceito e a incompreensão, mas não aldrabam, continuam a ser eles mesmos, continuam a dar ao outro o direito ao “não”. Considero, aliás, que esse é o pulo do gato. Deve ser de grande ajuda começar uma aproximação com essa visão das coisas.

Todo esse conjunto de diferenças de comportamento causou em mim uma forte impressão, um pouco depois de eu ter lido This is pleasure, de Mary Gaitskill, que começa com a narradora-personagem, Margot, a apresentar-nos Quin, um homem charmoso que se sente super confiante com a alegada habilidade de decifrar as pessoas em geral, mas principalmente as mulheres: “’They exchanged numbers. I asked him if he’d told her that he was about to get married and he said no, he hadn’t. He didn’t plan to call her. It was enough to feel the potencial between them, stored away like a cell-phone vídeo of something that had already happened. ‘She would like being hurt, but very slightly. She’d want affection more. You’d spank her with, I don’t know, a Ping-Pong paddle? And then touch her clit. This is pleasure’”’ He paused. “’And this is pain’”. O que nos une, afinal, como casais? O que determina quem escolhemos como nosso par? O reconhecimento de que os encontros são uma dádiva? Olhar ao espelho e piscar o olho à nossa própria esperteza, não… Enquanto optamos, a vida bate à nossa porta, como cantou o Manel Cruz e, dependendo do nosso repertório pessoal, é hora de recomeçar do que restou de uma paixão, como sugeriu o meu amor platónico, o Paulinho da Viola. Ânimo! Não há perfeição, encontros bons, sim, esses existem.

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2 COMMENTS

    • Muito obrigada, Ida. Eu gostei de ter escrito o texto, porque consegui encontrar um lugar para algumas ideias que foram surgindo da observação. Foi um bom exercício para mim. Ter significado para outras pessoas é ótimo. Fico mais esperançosa quanto à possibilidade de ter diálogo! É a decisão de estar aqui, de corpo e alma, combinada à escolha de viver as relações que fazem bem.

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