Nos acidentes de viação, continua a haver uma ideia profundamente enraizada: se o lesado teve “alguma culpa”, a indemnização deve ser reduzida ao mínimo ou até recusada. Este entendimento, ainda repetido em conversas informais, não corresponde ao que a lei realmente estabelece. A responsabilidade civil em acidentes é muito mais complexa e, ao contrário do que muitos pensam, a culpa parcial do lesado não implica automaticamente que receba pouco. Em Guimarães, onde muitos condutores circulam diariamente entre concelhos, esta confusão é frequente e afeta decisões importantes após um sinistro.
A legislação portuguesa é clara: quando o lesado contribui para o acidente, a indemnização só pode ser reduzida na medida da sua verdadeira participação na causa do dano. O artigo 570.º do Código Civil obriga tribunais e seguradoras a ponderar a gravidade da conduta de cada interveniente e a propor uma compensação proporcional. Não existe uma regra do “tudo ou nada”, mas antes uma análise fina da responsabilidade de cada parte. Mesmo quando o lesado comete um erro, isso não apaga o risco inerente ao veículo do outro condutor, nem a responsabilidade objetiva que recai sobre o detentor desse veículo.
Durante anos, porém, a interpretação dominante aproximou-se perigosamente de uma exclusão automática da indemnização sempre que o lesado tivesse contribuído para o acidente. A jurisprudência mais recente tem contrariando essa visão, em linha com o Direito da União Europeia, que exige proteção efetiva das vítimas – sobretudo das mais frágeis. A exclusão total da indemnização só é admissível quando o acidente resulta exclusivamente do comportamento do próprio lesado. E esta é uma realidade rara: na maioria dos sinistros existe combinação entre risco, velocidade, circulação intensa e condutas simultâneas que contribuem para o desfecho.
“Determinar o que causou o acidente é uma operação técnica que exige distinguir entre causa do acidente e causa dos danos, e não um exercício de atribuição moral imediata.”
A narrativa da “culpa concorrente” continua a ser usada de forma simplista em muitas regularizações. Seguradoras tentam, por vezes, apresentar o contributo do lesado como decisivo, ignorando a intervenção do risco próprio do veículo ou das condições da via. É uma estratégia conhecida: quanto maior a parcela de culpa atribuída ao lesado, menor o valor a pagar. Mas esta simplificação nem sempre resiste à análise jurídica. Determinar o que causou o acidente é uma operação técnica que exige distinguir entre causa do acidente e causa dos danos, e não um exercício de atribuição moral imediata.
Os casos que envolvem peões, ciclistas e motociclistas são paradigmáticos. Estas são consideradas vítimas vulneráveis e a lei protege-as de forma reforçada. Mesmo quando existe erro – atravessar sem atenção, circular fora da via designada ou não sinalizar devidamente – a exclusão total da indemnização é quase sempre desproporcionada. O seguro obrigatório cobre estes utilizadores precisamente porque o risco criado pelos veículos motorizados é muito superior ao risco que estas vítimas representam no sistema rodoviário.
Também o artigo 505.º do Código Civil, muitas vezes citado para excluir indemnizações, não pode ser lido de forma literal. O Direito europeu impõe uma interpretação restritiva: a culpa do lesado ou a sua contribuição para o acidente não pode eliminar automaticamente o seu direito a ser compensado. Só quando o comportamento do lesado for a causa única do acidente – e não apenas uma entre várias causas – é que a indemnização pode ser afastada. Em todos os outros casos, vale a regra da proporcionalidade.
Por tudo isto, a análise de um acidente nunca deve ser feita de forma apressada. Cada sinistro envolve fatores próprios: visibilidade, estado da via, velocidade, reação dos condutores, sinalização, condições meteorológicas. Nos casos mais complexos, pode existir até responsabilidade partilhada com entidades públicas por defeitos graves na estrada, como falta de aderência ou pavimento degradado. Aceitar conclusões simplistas, sem avaliação rigorosa da causalidade, é um erro que pode custar milhares de euros ao lesado.
A culpa parcial não é uma sentença de indemnização baixa. É apenas um elemento num quadro jurídico mais amplo, que combina responsabilidade pelo risco, contributo causal e tutela das vítimas. Em Guimarães e em toda a região Norte, onde o trânsito é intenso e os sinistros são frequentes, compreender esta regra é essencial para garantir que nenhum lesado abdica dos seus direitos por desconhecimento ou por interpretações antiquadas da lei.
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