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Guimarães
Domingo, Março 23, 2025
Florentino Cardoso
Florentino Cardoso
Licenciado em Direito, presidente da Grã Ordem Afonsina.

Tudo sobre a conjeturada ‘Taxa Turística’

Nos últimos anos, alguns dos municípios mais bafejados pela crescente procura turística que se tem registado em Portugal, resolveram aplicar um tributo sobre as dormidas em estabelecimentos hoteleiros, que baptizaram com a designação de «taxa municipal turística».

© Direitos Reservados

O enquadramento normativo dos poderes de criação, lançamento e cobrança de taxas por parte das autarquias decorre do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL), aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, que no seu artigo 3.º define as taxas das autarquias como «tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias, nos termos gerais». E n.º 2 do artigo 5.º prescreve que «as autarquias locais podem criar taxas para financiamento de utilidades geradas pela realização de despesa pública local, quando desta resultem utilidades divisíveis que beneficiem um grupo certo e determinado de sujeitos, independentemente da sua vontade».

A moderna doutrina portuguesa tem entendido que depois das alterações constitucionais de 1997 passou a existir uma tríade de tributos, a saber:

i. Impostos – tributos unilaterais destinados à obtenção de receita, sem qualquer contraprestação auferida pelo contribuinte;

ii. Taxas – tributos que se destinam a compensar uma prestação administrativa e, por isso, têm carácter sinalagmático, comutativo ou bilateral;

iii. Contribuições especiais – caracterizam-se como prestações pecuniárias e coactivas, exigidas por um ente público em contrapartida de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo (tributos paracomutativos).

O facto tributário é composto por dois elementos que se complementam e que são imprescindíveis para a sua formação, a saber: 

i. O elemento objectivo – é o facto tributário em si mesmo, desligado de um sujeito passivo de imposto;

ii. O elemento subjectivo – é aquele que estabelece uma relação entre o elemento objectivo do facto e uma determinada categoria de sujeitos, imputando-lhes a obrigação tributária.

O artigo 4.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (LGT) diz-nos que as taxas assentam:

i) na prestação concreta de um serviço público;

ii) na utilização de um bem do domínio público;

iii) na remoção de um obstáculo jurídico.

Deste modo, verifica-se a existência de um elemento comum a estas três hipóteses, que consiste numa prestação específica como contrapartida (bilateralidade). Neste aspecto as taxas distinguem-se dos impostos, uma vez que estes não estão associados a qualquer contraprestação recebida pelo contribuinte.

Haverá bilateralidade num tributo que é aplicado a quem pernoitar num estabelecimento de alojamento turístico de Guimarães?

Como vimos, o primeiro indicador legal da natureza bilateral de um tributo é ele ser devido pela prestação de um serviço público ao sujeito passivo a quem é cobrado e de uma forma individualizada. O segundo, é o facto de o mesmo ser devido pela utilização de um bem do domínio público. O terceiro, é o facto de o mesmo ser devido pela remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares. Ora, é manifestamente evidente que quem pernoita num hotel não recebe do município nenhum serviço de forma individualizada, porque o município não presta serviços desta natureza; não utiliza um bem do domínio público, antes um bem do domínio privado, mas pelo qual paga um preço e um imposto sobre o valor acrescentado; e não precisa de remover qualquer obstáculo jurídico, porque dormir num hotel não é uma actividade condicionada ou proibida por qualquer lei. Portanto, a primeira conclusão inequívoca a tirar é que este tributo não tem natureza bilateral ou sinalagmática e, portanto, não é uma taxa.

© Direitos Reservados

Mas como dissemos atrás, os tributos podem ser de três categorias. Afastada a hipótese de o tributo em análise revestir as características da taxa, passemos a averiguar se poderá enquadrar o tipo de contribuição especial ou tributo paracomutativo, que definimos supra como uma prestação pecuniária e coactiva, exigida por um ente público em contrapartida de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo.

Será que quem pernoitar num hotel de Guimarães provoca ou aproveita «as utilidades geradas pela realização de despesa pública pelo Município de Guimarães, com actividades e investimentos relacionados com a atividade turística»?

É óbvio que quem pernoita num hotel não provoca as referidas utilidades, mas a verdade é que as pode aproveitar se elas existirem e não forem apenas promessas futuras. Efetivamente, não existe aqui uma relação de correspondência jurídica (pontual e efetiva) entre o indivíduo que pernoita num hotel de Guimarães e a prestação (múltipla, complexa e até futura) que o Município diz proporcionar-lhe, mas poderá existir uma simples presunção de aproveitamento. E, de facto, as contribuições especiais oneram o indivíduo em virtude da sua pertença a um grupo que se presume provocar ou aproveitar certas prestações.

Mesmo que se admita que o regime geral das taxas das autarquias locais é suficientemente aberto a ponto de permitir a possibilidade de criação pelos municípios de tributos sobre serviços ou utilidades públicas não susceptíveis de individualização (indivisíveis), é razoável concluir que uma «taxa municipal de turismo» lançada exclusivamente sobre as dormidas de hóspedes não pode ser juridicamente diferenciada de um imposto.

Não temos dúvidas de que as autarquias locais podem lançar tributos para financiar despesas com atividades e investimentos relacionados com a actividade turística. Todavia, tal só pode acontecer quando a despesa se materializar em serviços individualizados que beneficiem um grupo específico de sujeitos e não quando sejam indivisíveis e beneficiem indistintamente a todos os habitantes do município. As taxas e as contribuições especiais não visam a satisfação de necessidades financeiras do município em função da capacidade contributiva dos sujeitos, nem decorrem do cumprimento de um dever de solidariedade. Esta função é desempenhada pelos impostos.

O ilustre constitucionalista, Prof. Doutor Vital Moreira, defendeu que «a taxa sobre as dormidas não é taxa, nem é turística. Não é taxa porque incide sobre a aquisição de serviços hoteleiros sem ligação com nenhum serviço municipal específico, configurando, assim, um imposto indirecto adicional, a acrescer ao IVA estadual. Nem é turística porque não abrange o universo dos turistas, designadamente os que se deslocam e permanecem na cidade com propósitos turísticos, pernoitando fora e, por outro lado, trata como turistas todos os hóspedes dos estabelecimentos hoteleiros, sendo certo que muitos pernoitam por motivos completamente desligados de razões turísticas».

A existência de taxas e contribuições especiais pode filiar-se na ideia de que cada um deve contribuir para a sustentabilidade da cidade.

Uma das questões que alguns especialistas têm levantado no âmbito da fiscalidade dos municípios é a de saber se os «munícipes temporários» devem ser obrigados a contribuir financeiramente para a sustentabilidade da cidade e em que medida. Neste contexto, a existência de taxas e contribuições especiais pode filiar-se na ideia de que cada um deve contribuir para a sustentabilidade da cidade na medida do custo que lhe provoca ou na medida do benefício que dela recebe. Assim, esses tributos poderão assumir a finalidade de financiamento da sustentabilidade da cidade, desde que sejam ditados pelo princípio da igualdade vertido no princípio da equivalência.

Ora, a admitir-se esta tese, o que se verifica é que com a «taxa de dormida» apenas se abrange uma parte dos «munícipes temporários», ou seja, exclusivamente aqueles que optarem por dormir na cidade e em estabelecimento hoteleiro, deixando de fora todos os outros, designadamente os que dormirem em casa de amigos, de familiares, em estabelecimentos não registados, em parques de campismo, em autocaravanas aparcadas em qualquer artéria do município, assim como os grupos excursionistas que entram na cidade para visitar o Castelo, o Paço dos Duques e passear no Centro Histórico, mas dormem noutros concelhos.

Deste modo, se Guimarães avançar com a criação de uma «taxa turística» não pode deixar de fora todos os grupos de visitantes nacionais e estrangeiros que chegam a Guimarães em autocarros de turismo e aqui permanecem algumas horas, mas sem pernoitar. Como é evidente, estes grupos de excursionistas utilizam a cidade com mais intensidade que os turistas que pernoitam, pois deslocam-se em veículos pesados que circulam pela cidade congestionando o trânsito, param em locais estratégicos para receber e largar passageiros e estacionam em ruas das zonas de excelência turística. Exemplo desta realidade é o que sucede nas Ruas D. Teresa e D. Urraca, no Monte Latito e na Avenida da República do Brasil, no Centro Histórico.

O regulamento «de jure constituendo» não pode isentar de contribuir para a sustentabilidade da cidade os «munícipes temporários», ou seja, aqueles que, dormindo noutros concelhos, utilizam a cidade com a mesma intensidade, ou mais, que aqueles que dormem em estabelecimentos hoteleiros e pagam «taxa turística».

Se assim não for, para além de se aproximar de um imposto sobre o consumo hoteleiro, como diz Vital Moreira, a conjeturada «taxa municipal turística» também estabelecerá uma diferenciação discriminatória entre cidadãos que se encontram nas mesmas condições – na medida em utilizam a cidade do mesmo modo, mas não contribuem para a sua sustentabilidade em idêntica medida – e, por isso, violará claramente o princípio da igualdade tributária.

Certamente que Guimarães deseja ser uma cidade para todos, para os munícipes permanentes e para os temporários, ou seja, os que nela trabalham e os que a visitam por quaisquer motivos.

Pese embora todas as objeções aqui levantadas a propósito da modalidade da taxa de dormida, entendemos que o município de Guimarães poderá perspetivar a aplicação deste fenómeno mundial como uma possível fonte de receita, mas sem prescindir de tomar em conta os três seguintes factores:

1. Criar um tributo turístico que seja pago por todos os que utilizam a cidade com finalidade turística e não apenas pelos que dormem em estabelecimentos hoteleiros ou de alojamento local.

2. Colocar à disposição de todos os sujeitos passivos desse tributo um conjunto de prestações concretas como contrapartida do respectivo pagamento, quer traduzidas em serviços específicos, quer pela eventual utilização de bens públicos.

3. Criar um Fundo de Desenvolvimento Turístico onde sejam consignadas todas as receitas provenientes da aplicação desse tributo, a fim de serem utilizadas, exclusivamente, no financiamento de atividades e investimentos considerados de interesse turístico, especialmente no âmbito do património cultural imaterial, ou seja, atividades e investimentos direta e potencialmente aproveitáveis pelos que utilizam a cidade com finalidade turística.

© 2025 Guimarães, agora!


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