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Sexta-feira, Março 29, 2024
Paulo César Gonçalves
Paulo César Gonçalves
Nasceu em Guimarães, voltado para o Castelo da Fundação, e, até ver, está vivo.

Outra vez os rankings

Nenhum problema social é tão universal quanto a opressão da criança.” Maria Montessori

Costumo afirmar que sou muito mais exigente e crítico com os meus do que com os outros. Enquanto defensor da escola pública, causa-me repulsa o embandeirar em arco contra os rankings pelas razões erradas. Os rankings não estão mal porque privilegiam as escolas privadas. Não: os rankings estão mal porque são, acima de tudo, uma mentira. É preciso encarar o problema de frente: os rankings são um crime.

É claro que os adeptos desta segregação apressar-se-ão a dizer que só não liga aos rankings quem nunca por eles foi bafejado. É já um clássico. Mas adiante.

O que eu não esperava, sinceramente, são as dores de quem, no público, conhece de cor o jogo viciado, mas gosta de o jogar. A vaidade é tramada.

Frequentei sempre o ensino público. Trabalho com crianças. Há 25, 30 anos, sem haver esta obsessão por rankings, havia, na escola pública, e não assobiemos para o lado, o emparelhamento, nas turmas da manhã, com os melhores horários, dos filhos dos professores, dos médicos e de outras profissões, por assim dizer, nobres. Esses e outros favores eram dados adquiridos. Não é perseguição: é um facto.

Os meninos das cercanias, que vinham de transportes públicos para a cidade, eram brindados com comentários do género “ides ser trolhas como os vossos pais”, quando as respostas calhavam ao largo das perguntas. Eu vivi isto. Na escola pública, não sei com que frequência, também se praticava selecção e interacção selectiva. Intolerável.

As crianças e os jovens são colocados num circo (e círculo) competitivo que nunca pediram. E têm de o aceitar, em nome da competitividade que alguém, que “estudou (marrou?) muito”, defende.

Em doze anos, não importam a ética, o raciocínio e espírito críticos, não importam a leitura nem a cultura no geral, não importam a criatividade, a imaginação, a empatia, a interacção social e o respeito pela natureza e pelo próximo, entre muitas outras capacidades. Não: o importante é ultrapassar o outro.

E ultrapassar o outro implica, em dados dias, a determinadas horas, escolhidos e marcados para tal, conseguir excretar informação decorada para folhas com perguntas, geralmente, fechadas.

Para coroar tudo isto, ainda chamam “inteligência” e “qualificação” a esta habilidade. E grande parte dos paizinhos e das mãezinhas acredita nisto.

Depois, temos, também, alguns directores das escolas públicas (sim, também das públicas) a “eliminarem”, quais possíveis focos de ignorância, os alunos que eles calculam que não se sairão bem nos exames.

Como? Convidando os pais e as mães a mudá-los para uma escola que consideram inferior, ou então empurrando-os, no final dos 7° ou 8° anos, para os cursos EFA.

O mesmo acontece no final do 9°, com o estreitamento rumo à mal-amada via dos profissionais, tão maltratada em Portugal.

É uma vergonha, um atraso civilizacional sem escrúpulos.

Os rankings servem, tal como os inefáveis “quadros de mérito”, os propósitos da inveja, do separatismo e da va(cu)idade. Há escolas públicas que afixam nas paredes e nas vitrines o resultado dos rankings (se for em sentido ascendente). Em que ficamos?

Temos também, porque é realmente anedótica, a falácia de que negar os rankings é aceitar o “nivelar por baixo”:

A escola deve ter, primeiro e acima de tudo, uma matriz social, humana e civilizadora. É óbvio, para qualquer pessoa, que não é, presentemente, o que acontece. Já foi pior? Muito pior, no que toca, por exemplo, ao acesso, mas estamos ainda longe do ideal. A escola, tendo-se livrado do exclusivismo na sua forma mais exposta, tem ficado refém de um aparelho pesado, com outros interesses que a empurram para o mesmo mal (como os que obedecem à categorização por rankings, como se fossem fábricas de cidadãos de diferentes categorias de importância).

Se a educação é compulsória, então é a escola que tem de cativar as crianças e os jovens. Nunca, mas mesmo nunca, a motivação vem com as mochilas…

Para mim, é muito claro que uma criança ou um jovem não são nem podem ser obrigados/forçados a gostar desta escola. Aliás, é saudável que não gostem. Se a educação é compulsória, então é a escola que tem de cativar as crianças e os jovens. Nunca, mas mesmo nunca, a motivação vem com as mochilas. É preciso olhar para as causas, não apenas para os efeitos. Um jovem que não goste, ou não se identifique, ou que não veja interesse, numa determinada área, não passará, por milagre, a dominá-la através da imposição. Há muitos caminhos para o mesmo fim: um conhecimento truncado não é integral.

Na década de ’20 do século passado, já Abel Salazar, médico e professor (e pintor, e por aí), Homem notável em qualquer tempo, era original na forma como conduzia as aulas: a partir de uma inovadora orientação pedagógica, defendia um ensino aberto, apoiado na observação, na investigação e na discussão científica, promovendo o autodidactismo dos alunos. Há cem anos!

Há um paternalismo muito grande em relação aos alunos, tomando-se de pressuposto que os mesmos são desprovidos de vontade, de autonomia, de responsabilidade, da faculdade da escolha, e o tal aparelho pesado, que confunde sacrifício com foco, valoriza, por assimilação, quem ‘marra’ (composto, claro, por quem se saiu bem num sistema que é, para a maioria, desinteressante, amorfo, repetitivo, fomentador de desigualdades e de invejas), achando que sabe sempre o que é melhor para os que ainda estão a estudar. Foi assim que se transformou uma conquista democrática numa máquina debulhadora.

Crer que os “bons alunos” (seja lá o que isso for) merecem mais oportunidades do que os alunos assim-assim, ou os alunos fracos, é acreditar que a ordem natural das coisas depende de um coador social aprimorado pelo sistema educativo, tendo por base a capacidade de armazenamento de informação a curto-prazo.

A escola deve servir para nos descobrirmos, para evoluirmos enquanto cidadãos do futuro, com ética e respeito pelo próximo, autónomos, curiosos, criativos, críticos e conscientes: lúcidos.

Reduzir o sistema educativo a um jogo de memorização beneficia, ainda que com outra roupagem, sempre a mesma cúpula.

Comecei com Montessori, e, porque faz todo o sentido, terminarei com ela:

“Toda a gente fala de paz, mas ninguém educa para a paz. Educa-se para a competição, e esse é o principio de qualquer guerra. Quando educarmos para a cooperação e solidariedade, nesse dia, estaremos a educar para a paz.”

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