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Quinta-feira, Novembro 21, 2024
Paulo Branco
Paulo Branco
Mergulhado mais de duas décadas no urbanismo e arquitectura, acostumou-se a reflectir sobre a organização humana e os seus efeitos em muitos sítios e cidades, alguns Países, e num único planeta que reclama uma mudança profunda de comportamentos. Amante da leitura e da música, acredita (ingenuamente) que o progresso assenta no desenvolvimento cultural e espiritual do indivíduo e das sociedades esperando que um dia o trabalho seja verdadeiramente libertador e a harmonização entre pessoas e o meio artificial e natural constituam a maior fonte de equilíbrio e felicidade.

O Contrabaixo

Gosto de viajar pela vida; gosto de ler! Ler é empreender viagens, efabular, abrir os sentidos e portas a mundos que, de outro modo, ficariam esquecidos ou encerrados na sua estanque existência. A literatura deambula pelos tempos; supera a vida, adiciona criatividade à experiência, acrescenta circunstâncias íntimas ou coletivas às narrativas que (re)inventa.

Os livros são os sonhos, os testemunhos, as máquinas do tempo, teletransportes sem máquinas, um rodopiar da imaginação até aos confins do universo ou às profundezas da alma – de encontro à triste condição humana, é certo, mas também à superação ou justa redenção.

“Os livros são os sonhos, os testemunhos, as máquinas do tempo, teletransportes sem máquinas, um rodopiar da imaginação…”

Patrick Suskind (autor de O Perfume), no seu magistral O Contrabaixo, apresenta-nos o monológico drama de um músico subalternizado, numa orquestra nacional alemã, pelo instrumento que toca – de aparência paquidérmica e baixo protagonismo no fraseado harmónico, o contrabaixo em tudo se confunde com o indivíduo no microcosmos social que é a orquestra; o homem/instrumento, é asfixiado pelo estigma da sua sonoridade, arredado do sonhar, teimando tristemente contra um sistema que não o reconhece como um dos sustentáculos da comunidade musical. Porque falo disto? Aos livros acrescento a vida quotidiana, o ir ao encontro dos heróis mas também do homem comum e dos esquecidos deste mundo.

Todos nós, cada qual no seu mister, fazemos parte de uma qualquer orquestra em que a visibilidade dos papéis eleva, justa ou injustamente, uns menosprezando outros. Não, não digo que somos todos iguais, nem faria sentido que a todos coubesse a mesmíssima responsabilidade ou o reconhecimento especial de todas as tarefas; mas se é verdade que muito do que assistimos na nossa caminhada se deve a virtuosos solistas, muito é igualmente devido à esforçada contribuição dos muitíssimos “contrabaixistas” que carregam, desde as entranhas da terra até ao último piso, as dificuldades e o êxito dos empreendimentos.

Por estes tempos, em que aplaudimos mais um êxito do nosso Festival de Jazz – onde os contrabaixistas são Estrelas – e porque o Natal está à porta, os livros, a razoável “experiência da arte” e uma sincera simpatia, levam-me a reconhecer a importância histórica de todos os menosprezados de orquestra que tanto ajudam, quer na construção musical, quer (e já devem ter percebido) no erguer de casas, escolas e cidades; são tão inúmeros e imprescindíveis como são negligentemente esquecidos no momento dos aplausos e elogios.

Sim, falo dos que invariavelmente queimam os olhos na papelada, a pele debaixo do sol, daqueles que sobem ao mais alto andaime ou se entranham nos mais profundos buracos arriscando a própria vida; sim, esses “contrabaixistas” que tanto me ensinaram a ler no ofício, aqueles que nós – supostos solistas – vulgarmente chamamos “trolhas” confundindo, uma vez mais, o homem com o instrumento. A todos os esquecidos, esses músicos proletários, ou construtores de uma qualquer coisa, desejo se considerem contrabaixistas…de Jazz. Feliz Natal!

© 2019 Guimarães, agora!

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