Aquilo em que vinha pensando para esta crónica talvez não atenda sempre pelo mesmo nome, já que depende de quem o nomeia; vou chamar de desconexão, palavra que eu ouço da boca de gente talhada para pensar o mundo, enquanto o aprecia (Do Priberam: “1. Dar apreço a. 2. Avaliar, considerar.”).
Ailton Krenak sem dúvida apresenta-se para o debate sobre o tal estado que me predispõe a escrever hoje. Ele cultiva uma mente brilhante e utiliza o termo desconexão e seus correlatos para alertar sobre o descompasso entre a consciência do homem e o estado da Terra.
Na opinião dele, que infelizmente testemunha noite e dia investidas predatórias em territórios indígenas supostamente protegidos ao abrigo da lei, o homem está tão desligado da vitalidade que a tudo sustenta, que não a reconhece de todo. Sobrevive como se não soubesse que a energia vital corre nas veias dos seus irmãos, dá movimento aos animais, circula com a água dos rios, atravessa o espaço aéreo, infiltra-se nas raízes das árvores e por aí afora.
Como se consegue essa proeza? Como se pede aos outros, mesmo que implicitamente, atitudes de quem não sabe e tem raiva de quem quer saber?
Acredito na existência de uma máquina de moer consciências, bem oleada, compreensível na atual conjuntura – a depreciação das Artes é um de seus resultados. Ela atua sobre um homem que então já não se enamora das coisas da vida nem pisa este chão com respeito. Pode soar exagerado o que afirmo mas, se colocado numa escala de pequenos a grandes desprezos, parece-me credível.
O homem distante de si não precisa cuidar, pois não tem motivos verdadeiros. Não tem o eixo que é suposto ter para preservar e proteger. Prefere a música que não emociona (e não tenciono aludir à música que faz chorar, penso nas mais diversas emoções acionadas pela música). Repete anedotas quase vazias, para não conversar. À entrada do parque florestal, abandona o cão sem mais nem menos. Larga o carro mal estacionado e os outros que lutem para desviar… Ignora o vizinho. Envenena os alimentos. Supervaloriza a perfeição e desmerece o erro. Faz a guerra! Está morto como um dente sem raiz.
Daí que não leia, não tenha interesse em olhar à volta e constatar parentesco com o outro. E é improvável ler, à espera de que os bons enredos atuem como entorpecentes ou pretextos para descurar – a leitura aprofunda, quer seja pelo drama, pela caricatura, pelos papéis agudizados que um narrador escancara quando puxa pelo riso ou pelo espanto do leitor.
A experimentação da linguagem espicaça, desacostuma. E quem não se revê nos retratos perturbadores, desconcertantes, quem não se revê num irmão perde o fio da meada e vira presa fácil da vergonha, vejam só: o homem que abriu mão da leitura de um texto ou da leitura do mundo não se vai admitir confuso ou mal informado e, de repente, voltar a ouvir, tentado por algum pormenor. Ele vai desmerecer o impacto que cada criação e cada criatura tem. Ele vai escapar pela tangente e aumentar o grau de desconexão.
Quando se estuda o cânone na literatura, a presença do original e do familiar em um texto não é incoerente nem aleatória. O texto central de uma cultura, aquele que não se evita visitar, é ao mesmo tempo bonito como uma surpresa e nosso amigo de infância. Captura a nossa atenção pelo todo e pelo detalhe e vai gerar muitas (re)leituras, não importando se certas ou se erradas. O erro também é criativo.
O homem desconectado do humano não quer saber da do centro nervoso, da vitalidade, não quer saber das particularidades (mas faz juízos de valor sobre o todo), não sustenta uma pergunta, não anseia por uma resposta, não vai ao coração das coisas. Não tem, portanto, interlocutores. Está sozinho, munido de uma estranha autoestima. É, por exemplo, o representante maior da nação que nos joga para a vala comum, que não tem políticas públicas para nos lançar em um mundo de melhores horizontes. Sem interlocutores, não admite falar sozinho, decide mal, mas decide por todos.
Termino minha reflexão sobre consciências, escolhas e histórias que as Artes e a Literatura contam, a transcrever uma parte de “Odabeb”, crónica de Rubem Braga publicada no periódico carioca Correio da Manhã, em 27/04/1951. A meu ver assenta como uma luva no que estive a tocar:
“Contam de Murilo Mendes que um dia ele ia passando com um amigo por uma rua de Botafogo quando viu uma mulher na janela de um sobrado. Deu uma coisa no poeta, ele se deteve na calçada fronteira, ergueu o braço e gritou: - Meus parabéns, minha senhora. Está uma coisa belíssima! Mulher na janela! Há muito tempo não se via! Está belíssimo! A senhora, assustada, fechou a janela bruscamente, achando que estava diante de um louco. Mas o poeta prosseguiu seu caminho com o sentimento do dever cumprido. Também contam que um bêbado ia pela rua e um enorme jacaré ia atrás dele. Cada vez que o homem entrava em um bar o jacaré gritava: bêbado! Quando o homem saía de um bar para entrar em outro, o jacaré gritava outra vez: bêbado! Até que uma hora o homem perdeu a paciência, agarrou o jacaré pelos queixos e o virou pelo avesso, jogando-o a um canto da calçada. Quando saiu do bar o jacaré lhe disse - odabeb! - que é bêbado de trás para diante. Há outras histórias, mas penso nessa. Não matamos o nosso jacaré, nem nenhum outro bicho; apenas o que fazemos é virá-lo pelo avesso, o que é lamentável, mas ineficiente.”
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