- É uma arte com história no mundo. E em Guimarães está esquecida até que alguém lhe toque, esperando por um lamiré… de Sol (idariedade), cumprindo um Fá(do), enquanto duplo Ré(u)… Quiçá esperando por Outra Voz… e Som!
- Há um património musical perdido em arquivos de várias instituições: um património vasto e diversificado vertido em livros e pautas, deixada esquecida e escondida em armários de Museus e Instituições. Eduardo Magalhães, musicólogo, não é o seu guardião. É, seguramente, quem mais e melhor o conhece.
- O mais remoto é de 1533 e está guardado (e preservado) pelas instituições onde se depositam livros e partituras de música. Este espólio musical espalha-se pelo Museu Alberto Sampaio, Venerável Ordem Terceira de São Francisco, Paço dos Duques de Bragança, Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Sociedade Martins Sarmento, Sociedade Musical de Guimarães e Colegiada da Oliveira. Está quase todo armazenado à espera de quem o ressuscite e lhe dê som… de novo!
- Esse património foi, inclusive, objecto de um curso, organizado pelo Museu Alberto Sampaio e pela Associação Amiguinhos do Museu. Esse curso não teve a pretenção de ser uma formação específica mas tão só para quem gosta da música numa abrangência cultural.
O património musical vimaranense é composto de…
Em primeiro lugar, tenho que definir a palavra Património já que o termo é dinâmico. Explicando melhor: o Património que temos hoje é maior do que o de ontem e será, necessariamente, menor do que teremos amanhã. Assim, quando se fala em património, há que emparedá-lo na história. O Património de que me venho a ocupar desde há já alguns anos é maioritariamente do século XV para a frente, esbarrando nos princípios do século XX, o que não exclui umas incursões arquivísticas mais recuadas como é o caso de fragmentos musicais, em pergaminho, guardados no Arquivo Municipal, e datados dos séculos XII a XIV. Deste modo, e respondendo objectivamente à pergunta, o Património que eu me refiro e pelo qual me tenho interessado, diversifica-se por Livros, Partituras de Música, Pintura, Ourivesaria, Tapeçarias e escultura. Vou acrescentar a esta enumeração algumas personalidades vimaranenses coladas por mérito e vocação a este património. Basta lembrar o grande João Lopes Faria, o historiador-mor de Guimarães, Bernardo Valentim Moreira de Sá, patrono do Conservatório de Guimarães, para não falar de outros de que gostaria de fazer realçar uma figura maior do meio musical da segunda metade do século XX vimaranense, o fidalgo do Toural. Mas há mais. A música ainda é vista por uma boa maioria de pessoas como entretenimento, seja instrumentalmente, seja vocalmente. Dizer a pessoas que se podem ler contextos musicais na pintura soará, no mínimo, pretensioso de quem afirma. Só que, desde o século XIX, para não recuar mais, existe uma área musical a que se chamou Iconografia Musical. Definindo Iconografia como «escrita por imagem», basta acrescentar o «musical». Já para não falar dos aspectos cognitivos que se desenvolvem quando a Educação Musical no ensino público for bem ministrada, desde idades menores das crianças.
“Não quero desvalorizar o acto de cantar só que, quando falamos em educação musical, o Cantar tem que pressupor objectivos.”
De que modo se pode ver, ler, ouvir, gostar?
Para responder afirmativamente a esta questão teria que pressupor que a formação musical existente na sociedade era uma formação abrangente e que contemplasse algumas das bastantes espécies ou tipos de música. Falar em «música clássica», para além de a caracterização não ter rigor algum, é assustar muitas pessoas ou ouvintes. Isto porque a formação musical no ensino português é praticamente inexistente. O Ensino musical no 1º ciclo pode considerar-se nulo, embora esteja prevista nos programas oficiais dos quatro anos. A música quase se pode dizer arrumada nas Actividades de Enriquecimento Escolar, conhecidas por AEC. E, convenhamos, quando são ministradas nestas AEC, estamos a falar praticamente de actividade vocal, cantiguinhas para entreter o tempo. Não quero desvalorizar o acto de cantar só que, quando falamos em educação musical, o Cantar tem que pressupor objectivos. Quando avançamos para o ciclo seguinte, o único onde a Educação Musical pertence ao Programa e está no horário dos alunos com a carga horária de duas horas semanais, ministram-se conceitos a esmo, porque estão no programa, que prevê uma continuidade desde o 1º ano, em que este seria o 5º ano de Educação Musical. O próprio programa, para ser realista deveria ser revisto, mais propriamente, refeito. Como professor durante alguns anos deste grau de ensino, nunca me senti à-vontade a ensinar estas coisas aos alunos até porque não havia retorno da parte deles que em motivação quer resultados. Assim, e agora respondendo à pergunta, e reportando-me ao património da cidade, ver-se pode, visitando as instituições que guardam estes espólios, ler-se só conhecendo as escritas musicais, ou então alguma informação sobre história da música de molde a poderem entender-se algumas manifestações musicais expostas em diversos locais. Ouvir-se, só se forem os Carrilhões de Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos ou da Basílica de São Pedro do Toural, que também são instrumentos musicais.
De certa maneira é mais um património religioso ou ligado a ritos religiosos?
Posso responder que sim, que o grosso do espólio pertence ao campo religioso nas suas duas vertentes: litúrgica e religiosa. A diferença entre música litúrgica e música religiosa está no facto da litúrgica ser parte integrante do rito, seja Missa seja outro qualquer. Música religiosa é a música de temática religiosa variada que, naturalmente, também integra a litúrgica. Exemplificando: O Canto de Entrada nas missas modernas, é um canto religioso, mas não litúrgico, porque não pertence aos textos da Missa. Os únicos litúrgicos que se cantam são o «Senhor tende piedade», o «Glória a Deus», o «Santo» e o «Cordeiro de Deus». Os documentos musicais guardados principalmente no Arquivo Municipal e na Sociedade Martins Sarmento, mas também na Colegiada da Oliveira e no Museu Alberto Sampaio, são livros ou partituras destas temáticas, litúrgica e religiosa. Mas não só. Lembremo-nos dos dois Hinos da cidade ou de hinos a associações e a individualidades vimaranenses, como o «inventor» das Gualterianas no modelo que se iniciou em 1906, João de Melo, por exemplo. Ou obras oferecidas a instituições da cidade, como os Bombeiros, a saudosa Associação Comercial, a Associação Artística, entre muitas outras, onde se inclui o clube de futebol da cidade com um hino datado de 1932.
Por exemplo, poderia, no caso da música ser tocado em qualquer instrumento ou interpretado por um músico ou uma orquestra?
Sim. Há música guardada que poderia servir de repertório tanto a instrumentistas a solo como em formação orquestral. Mas os grupos instrumentais têm uma base de repertório que passa pelos grandes nomes de músicos da história, como Beethoven ou Mozart, ou de outros países e, nacionalmente, afloram um ou outro compositor dos inícios do século XX, grandes músicos, naturalmente, do panorama musical português, como Freitas Branco ou Viana da Mota. Não há uma política de divulgação do património local também por um motivo adjacente. É música ainda em cópias manuscritas, necessitando, por isso, de um trabalho de transcrição moderno que facilitasse a vida a quem as quisesse interpretar. Mantendo-me nos séculos XVII e XIX, a música era composta com o objectivo de ser executada, se não no imediato, de qualquer maneira a curto prazo. Dou como exemplo duas composições feitas propositadamente para o funeral da filha do meio do fidalgo do Toural, uma figura que passa despercebida a muitos vimaranenses. O palacete que foi dele, lá se mantém, antes da basílica de São Pedro, testemunha de muito brilho musical nos seus salões, patrocinado por esse fidalgo, João Nápoles. A filha Helena, falecida com 20 dias de vida, teve direito às músicas, compostas sobre dois salmos, «a grande orquestra», como dizem as partituras, para o enterro da menina. A inspiração saiu de um amigo do fidalgo, um músico de origem basca muito conhecido e activo musicalmente no Porto, José Francisco Arroio. Se houvesse vontade, e se calhar seria necessária a vontade política também, esse património musical poderia ganhar som, de novo. Uma pequenina parte já teve direito a essa ressurreição, momentânea que seja, na publicação Hinos e Marchas Históricas de Guimarães, edição da Sociedade Musical de Guimarães e patrocinada pela Capital Europeia da Cultura. Foram 26 partituras que transcrevi e se fizeram ouvir em alguns lugares da cidade, como a Igreja de São Francisco ou o Paço dos Duques de Bragança. Como este projecto, precisavam aparecer outros que obtivessem a mesma concretização.
Qual?
Não vale a pena estar a especificar quais as músicas que deveriam ou poderiam voltar a ouvir-se na cidade. Uma boa parte dos hinos que mencionei estão associados a instituições. Dou dois exemplos, um negativo e outro positivo. A fundação da Banda dos Guise que serviu de germe ao actual Conservatório de Música, tem um hino a que o compositor deu dois nomes: Hino da Banda ou Hino da Fundação. Existe, inclusive, a letra da autoria do poeta vimaranense, António Mendes Simões. Todos os anos, a 25 de Março, é comemorada a fundação desta instituição em 1903. A pergunta é lógica: porque não se apropriam do hino e o fazem ouvir de novo, tendo o privilégio de possuírem dentro de portas gente capaz de o fazer bem? Um exemplo positivo: A Sociedade Martins Sarmento também ganhou um hino, um ano após a sua criação, em Março de 1882. A música e letra são, como se costuma dizer, da prata da casa: música de Maria da Glória Sousa Bandeira, filha do director do jornal mais antigo de Guimarães, o Azemel e casada com um dos históricos da Sociedade, o dr. Avelino da Silva Guimarães. A letra é de José de Freitas Costa, um dos distintos redactores que deram vida à ainda pujante Revista de Guimarães. A partir do momento em que transcrevi a sua partitura e foi interpretada no âmbito da divulgação dos Hinos e Marchas Históricas, todos os anos, nesse 9 de Março, o hino faz-se ouvir, quando é possível interpretado vocalmente e acompanhado ao piano, ou quando não há possibilidades de músicos que o façam, o Hino ouve-se igualmente, mas através de gravação áudio. Fazem jus ao desejo de outro grande nome da cidade, o jornalista- historiador A, L. de Carvalho quando fala da Sociedade Martins Sarmento e que o Notícias de Guimarães transcreveu, no seu número de 2 de Setembro de 1956: «Era necessário um Hino. E este surgiu. Para o acompanhar, compôs-se letra rimada. Ao nove de Março de cada ano, o hino estruge. (…) Os precursores da instituição como que renascem nesse hino. Tem estruturação apoteótica. Falta que o ensinem a cantar às crianças das escolas. Assim se consagrará o hino».
O que se pode aprender, na especificidade dos livros que fazem parte desse património musical?
Se considerarmos os livros litúrgicos, como o são o conjunto dos livros de coro guardados no Museu Alberto Sampaio, com a música e o texto referentes às Missas e ao Ofício Divino ou Ofício das Horas, aprendemos como era a sua estrutura pré-concílio de Trento, particularmente os livros que provieram do Mosteiro de Santa Marinha da Costa, os mais antigos. O mais antigo da colecção é de 1533 e os outros são desta primeira metade do século XVI. Já o conjunto que serviu a Colegiada, mais pobres no que respeita a decoração e tipo de pergaminho utilizado, dá para comparar o período pré ocupação espanhola e a ocupação propriamente dita, já que os que aparecem datados, são entre 1610 e 1614. Aprende-se, em alguns deles, a forma como eram cantados ou em alternância com dois coros ou com o órgão, quando ele tocava à vez com o coro. Aprende-se, pelo cuidado e conservação dos livros, o valor que se tinha por eles. Um «ex-libris» deste património é o Passionário polifónico encontrado no acervo da Sociedade Martins Sarmento e que serviu de tese de doutoramento a José Maria Pedrosa Cardoso com quem tive o gosto de trabalhar e transcrever essa música dos finais do século XVI para notação musical moderna; uma edição de luxo, com o patrocínio da Capital Europeia da Cultura. Aí aprende-se uma forma peculiar de cantar as Paixões de Cristo, à moda, digamos assim, do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, uma forma tipicamente portuguesa. Para além de aprender como se escrevia música nesse período. Outras músicas, como o são os Hinos e as Marchas agregadas a Associações ou a devoções, como o Hino da Peregrinação à Penha ou o da Fonte de Santa Catarina, dão- nos uma ideia da importância destas instituições para merecerem a distinção de lhes dedicarem hinos ou marchas.
“Musicalmente falando, é um património morto, no sentido em que poucos o valorizam e ainda mais poucos pensam na possibilidade de o trazer à vida, novamente.”
Que realidade se revê em todo esse património?
A realidade que se constata neste património é o de um património armazenado. Musicalmente falando, é um património morto, no sentido em que poucos o valorizam e ainda mais poucos pensam na possibilidade de o trazer à vida, novamente. Julgarei que não estou a ser exagerado se afirmar que a quase totalidade dos vimaranenses desconhece que no janelão da Colegiada estão esculpidos 24 anjos músicos, em grande estado de degradação. Uma das coisas que se aprecia na Catedral de Santiago de Compostela, é o que se conhece como «Pórtico da Glória», um friso de 24 anciãos, cada qual com o seu instrumento musical. Uma obra medieval, bastante estudada e divulgada. Nós temos o nosso «Pórtico», também: mas, ignorado e abandonado às intempéries do tempo e dos dejectos das aves. E isto num monumento classificado… Julgo que será urgente catalogar devidamente todo o Património Musical da cidade no que se refere a livros e partituras e pensar em colocar essa música nos ouvidos e não só nos olhos. E cativar e incentivar estudantes para trabalharem nas suas teses este testemunho de outros tempos antes que se percam ou se deteriorem sem regresso.
E qual é a utilidade tem todo esse património para além de peças de museu?
A utilidade do património que identifiquei é aquela que lhe quiserem dar; ou nenhuma, se quiserem continuar como até aqui. O ensino da música é dos mais tradicionalistas que conheci: do género, ensino como aprendi… com já bastantes honrosas excepções, a partir das gerações mais novas saídas dos cursos universitários que antes não existiam. O que significa, como já referi anteriormente, que é muito valorizado o ensino instrumental. Felizmente, o campo da investigação musicológica já se abriu e têm sido produzidas teses, quer de mestrado quer de doutoramentos muito interessantes e viradas para outras perspectivas diferentes da interpretação musical. Uma das áreas em que se têm desenvolvido investigações é na da Iconografia Musical: estudar a música a partir de obras de arte. Qualquer alteração de rotinas de ensino leva tempo a impor-se. Quero acreditar que o futuro da música terá enfoques mais diversificados. As arquivoltas do Janelão da Colegiada, por exemplo, são um óptimo recurso pedagógico para qualquer aula de organologia ou história da música.
Ficará, para sempre, guardado nos arquivos? Não inspira ninguém?
Acho que a esta questão a resposta está contida na pergunta anterior. A formação musical no nosso país é pobre no que à variedade de cursos diz respeito. Um ensino universitário poderia conter, com facilidade uma ou duas unidades de áreas musicais que se adequassem ao curso em si. Quem desenha os curricula dos cursos é muito limitado na abrangência do mesmo. São afunilados para a especificidade esquecendo outros contextos que o poderiam enriquecer. Mas a música acaba por ser irrelevante mesmo para quem aprova esses curricula. Tenho conhecimento, porque leccionei lá, que a um Curso de Educação de Infância foi suprimida a Educação Musical e foi aprovado pelo Ministério. A pergunta impõe-se: a Educação Musical num curso vocacionado para crianças é ou não é nuclear?
Que instituições guardam essa riqueza musical?
As instituições depositárias deste espólio musical são a Colegiada da Oliveira, A Venerável Ordem Terceira de São Francisco, o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, o Museu Alberto Sampaio, a Sociedade Musical de Guimarães e o Paço dos Duques de Bragança. No que se refere à iconografia musical, podem encontrar-se manifestações em outros locais, como a capela de Nossa Senhora da Conceição e uma ou outra casa particular.
Quão rico é esse património?
A riqueza de um património como este, reside no valor que se lhe atribui. A música durante muito tempo foi relegada para interesse menor em relação a outras artes. Isto também se pode dever à sua especificidade. Para se apreciar uma música ela tem que se ouvir, diferente de outras artes que estão ao alcance dos olhos, como é o caso do cinema, da escultura, da pintura, logo, possíveis de se apreciar e valorizar. Uma partitura só é música quando sai do papel para o instrumento musical. Por isso, desejo mesmo que alguém se interesse por interpretar esta história musical local que também pertence à história da música nacional.
Haverá alguns autores vimaranenses que ali possam ser encontrados?
Sim, existem autores vimaranenses neste conjunto. O padre João Baptista Varela, amigo e companheiro de músicas do fidalgo do Toural e sobrinho do vizelense Frei Domingos Varela, autor de um Compêndio de Música, publicado no Porto em 1806; Francisco de Sá Noronha, que estudou na Colegiada, foi menino-prodígio do violino, emigrando depois para o Brasil, mas apresentando-se sempre como vimaranense; o padre Eugénio da Mota, compositor do hino da peregrinação à Penha e do Asilo de Mendicidade, e de outras peças; Bernardo Valentim Moreira de Sá, um dos grandes vultos da música portuguesa da segunda metade do século XIX e inícios de vinte, etc.
E os jovens, se confrontados com tal património, o que poderiam aprender?
Depende de quem ensina e se ensina. Há muito que eu reclamo, e não sou só eu, que o ensino público da disciplina de História deveria contemplar, obrigatoriamente, algumas unidades da história local. Transportando este critério para a música, dever-se-ia fazer o mesmo. Isso obrigaria a mexer no que está guardado há tempo demais e obrigava-se a transcrever essa história da vida musical de Guimarães e utilizá-la como material pedagógico e levá-la a audições quer de classe, quer públicas.
Passando para a actualidade, que património de hoje será transmitido para o futuro?
É difícil responder a esta questão já que são muitas variáveis a que está sujeita. Desde logo, se o património é valorizado ou não por quem tem poderes de decisão. Não saindo aqui de Guimarães, quem é que deveria assumir este património e elevá-lo até onde pudesse ser apreciado e valorizado? Falando de música e como já referi anteriormente, se nem a Escola de Música oficial da cidade revela interesses por ele… Por isso, e antes de tudo, haveria que formar e informar estes decisores e motivá-los para o resgate desta fortuna cultural adormecida em arquivos, bibliotecas e paredes.
D. João IV tinha o hábito de importar músicos para a sua corte. É o que acontece, hoje, por cá?
Os centros principais da Música nos séculos passados, foram variando consoante as modas, chamemos-lhe assim. Se o Renascimento se não pode situar em importância num só país, já que Inglaterra, França, Flandres e Itália são importantes neste movimento musical, já o período seguinte, nasceu em Florença nos finais do século XVI, o período barroco. E é de Itália e para Itália que saem e entram compositores que vêm viver e aprender este novo estilo que criou a Ópera e o espalham pela Europa conhecida de então. A Alemanha vai gerar dois monstros sagrados que ainda hoje se consideram os de maior relevo deste período: Bach e Haendel, dois germânicos com percursos profissionais diferentes. As cortes reais sempre precisaram de música para várias funções e ocasiões: música religiosa para os Ofícios, Música festiva para os grandes acontecimentos ou música do dia-a-dia para o quotidiano da vida cortesã. A música italiana porque dominante no gosto europeu, permitia que as suas figuras de relevo trabalhassem em diferentes cortes e que os reis patrocinassem músicos nacionais para que estudassem nesses centros. Portugal «importou» grandes nomes como o são Domenico Scarlatti ou David Perez, vindos, por vezes, para mestres-capela das principais sés do país, especificamente Lisboa e Évora, porque era entre estas duas que a corte real se movia. D. João IV, ele próprio um bom músico de formação, importou tudo o que era novidade em composições desse período, muitas delas perdidas mais tarde, infelizmente, no terramoto de 1755. Hoje, continuam a sair músicos das nossas escolas que vão continuar os seus estudos fora do país, num objectivo à vista de poderem usufruir de maiores perspectivas de trabalho. Só de cabeça e rapidamente, deixo quatro nomes das minhas relações de conhecimento: o violinista Emanuel Salvador, o clarinetista Pedro Minhava, a violinista Inês Marques e o fagotista Álvaro Machado.
📸 GA!
O nosso talento musical é notado a que nível e por quem?
A resposta está directamente proporcional a outras áreas de competências nacionais. Somos um país pequeno, num extremo da Europa, isolado tempo demais das dinâmicas políticas, económicas e culturais dos restantes países. Os três nomes que mencionei estudaram em Guimarães e de Guimarães saíram com um rótulo de competência mas que a cidade não lha poderia aproveitar como deveria. O objectivo de um instrumentista é tocar numa grande orquestra que, em Portugal, como se sabe, são de porte menor, dificilmente permitindo uma carreira de sucesso aos músicos. Exceptuo a Orquestra Gulbenkian, naturalmente. Assim, mesmo com talentos reconhecidos, o destino profissional que lhes está reservado é o ensino de que fogem, a não ser que lhes não sejam abertas outras portas.
Como musicólogo, qual é a sua opinião sobre o que se faz e ensina, em Guimarães?
Embora a musicologia, como área, possa abranger tudo o que à música respeita, a semântica restringiu ao termo a área da investigação mais do que quaisquer outras. Assim, o musicólogo deve ter uma formação sólida em história para poder «encaixar» a música nos diferentes contextos. Quando menciono história não me refiro só à história sócio-política, mas também às artes, uma vez que a música aparece por todo o lado. Quando me questionam a formação em arte, respondo que só tive um semestre de história de arte nos meus tempos de licenciatura mas que, de qualquer maneira, me permitiram bases, poucas que sejam, para complementar uma maior formação. Já fazem muitos anos que estou fora do roteiro do ensino o que me dificulta uma resposta assertiva sobre o assunto. Quero acreditar que os ensinos modernos saiam daquele afunilamento instrumental e abranjam áreas periféricas de forma a permitirem ao futuro profissional capacidades investigativas mesmo que sejam na especificidade do seu instrumento. Lembro a este propósito que num tempo da minha vida em que apresentava a Orquestra do Norte, em concertos pedagógicos, por muitas escolas do país, sempre critiquei o formato das notas do Programa: aí podia ler-se informação bastante sobre o maestro, um bocadinho sobre a orquestra e nenhuma informação sobre os «donos» das obras. Espero que já não seja assim.
O panorama é agora diferente de antanho?
Decididamente, sim. Em primeiro lugar pela disseminação de escola, academias e conservatórios de música um pouco por todo o país e não só nos principais centros. E quando escrevo escolas estou a referir-me a ensino oficial e não a cursinhos de música pela rama, voltados para fazerem músicos à pressa que tocassem quer em Ranchos e agrupamentos do género, quer em Bandas Filarmónicas. Uma Banda Filarmónica de Pevidém ombreia em profissionalismo e competência com as melhores do género. Pena a cidade ter deixado morrer a sua Banda dos Guises, com um fim inglório no ano de 1973. As próprias Casas de instrumentos musicais tinham «escolas», embora com o objectivo de poderem vender o instrumento musical. Este ensino amador tem os seus méritos: servem outro tipo de formações musicais, numa perspectiva de festa e não de concerto.
O ensino da música, nas escolas particulares, de associações, como a Academia Valentim Moreira de Sá, o que lhe diz?
O ensino oficial da Música nunca ofereceu a aprendizagem de grande variedade de instrumentos. Para além do piano, aprendiam-se os instrumentos com representação nas orquestras sinfónicas. Assim, sobraram sempre muitos instrumentos do agrado popular e sem oportunidades públicas de os aprender. Entram aqui , então, as associações. Em Guimarães, lembro à cabeça, para além da Sociedade Musical de Guimarães, os Trovadores do Cano e o Círculo de Arte e Recreio. Refiro-me só à cidade e não ao concelho. A própria guitarra, dita clássica, não tem tantos anos assim de curriculum académico. Recentemente, por exemplo, a gaita-de-foles ganhou estatuto e já tem ensino oficial, bem assim como o acordeão. Agora, há que reconhecer que a abordagem nesse ensino era muito superficial e, instrumentalmente falando, muito facilitada. Falo com conhecimento próprio porque também eu me movi neste género de ensino.
Quais as personagens que na actualidade têm sido fundamentais para o desenvolvimento musical na cidade?
Se actualidade se situar no após Guimarães Capital Europeia da Cultura e começando por ela mesma, tenho a certeza que foi a grande viragem musical na cidade através de iniciativas, algumas das quais ainda perduram, como é o caso da «Outra Voz». Mas há pessoas ligadas ao associativismo que afirmo foram fundamentais para a instituição da Música na sua vertente mais séria e académica. Lembro as reuniões em que participei, na década de 80 do século passado, entre associações da cidade que pretendiam uma escola única de música e convocadas pela Câmara Municipal: Conservatório da prof. Norma (como era conhecido), Sociedade Musical de Guimarães, Casa Vimúsica, Círculo de Arte e Recreio e, já não recordo, se os Trovadores do Cano também participavam. Abreviando, nasceu o Conservatório de Música de Guimarães, dirigido pela professora Norma, com estatuto de ensino oficial ratificado pelo Ministério da Educação. Irregularidades de funcionamento levaram ao seu encerramento pela inspecção do ensino. Aí, duas figuras da cidade foram essenciais para o surgimento da Academia de Música Valentim Moreira de Sá: o dr. Armindo Cachada e o dr. Domingos Salvador. O dr. Armindo Cachada, jornalista de especialização foi uma peça fulcral no desenvolvimento de áreas musicais até aí restringidas ao ensono do instrumento. A ele se deve a criação do Portal Musicave, saído das iniciativas promovidas sob a égide da Capital Europeia da Cultura. Sem ser músico, conseguiu ver para além da música como som tocado ou cantado. A Musicologia no que respeita à investigação em Guimarães, deve-lhe muito. Neste destaque, gostaria de mencionar o óptimo trabalho no ensino da música na Escola de Música e Bailado de Guimarães. Desde muito cedo que, diferente de outras associações, se rodeou de profissionais devidamente habilitados para o ensino da música, com algum destaque para as classes dos mais novos. «Chapeau» aos amigos Rui Donas e Helena Sousa. Outra figura da música com relevo em projectos que desenvolve ou desenvolveu, é o Tiago Simães, um músico muito completo, excelente profissional tanto na área vocal como na instrumental.
Que papel podem ter os equipamentos mais recentes?
Se estamos a falar do Teatro Jordão vou assumir a minha ignorância no que respeita às condições que oferece para substituir a velhinha Academia de Música Valentim Moreira de Sá. Se com instalações provisórias e exíguas se construiu uma grande escola de música na cidade, espero que, com recursos modernos, a escola progrida e se torne ainda mais relevante na cidade.
E nas associações, a música é o quê?
O meu trabalho de incursão na música histórica de Guimarães limitou-me bastante o conhecimento da vida musical nas associações vimaranenses. Pelos Media, sei que a Associação Artística tem vindo a promover actividades no âmbito da música dita clássica, em especial no que se refere ao canto. Desconheço a actualidade do ensino da música no Círculo de Arte e Recreio. A Associação Convívio continua activíssima em projectos musicais, continuando, anualmente a organizar o Festival de Jazz, já com uma vida considerável.
Nas bandas filarmónicas, a música ainda é o que era?
Tenho um carinho particular pelas Bandas Filarmónicas. Pelo meu curriculum passou em tempos longínquos a regência de uma Banda Filarmónica juvenil e, a partir daí, ficou-me gravado o gosto por estas formações musicais. No âmbito do Projecto Musicave, coube-me a tarefa de coordenar a organização e catalogação do espólio da antiga Banda dos Guises que foi disponibilizado online, neste momento em manutenção. Se a pergunta de direcciona sobre o papel das Bandas, a resposta é «assim-assim», e explico: Hoje, a oferta do ensino da música corre todo o país, o que não acontecia há umas dezenas de anos atrás. Numa terra interior, aprender música significava entrar numa Banda e aí fazer a sua formação musical e instrumental. Assim, as Bandas cumpriam uma dupla função: pedagógica e cultural. Por outro lado, não havia festividade sem a música das Bandas Filarmónicas, o que hoje, já não é muito verdade. Por exemplo, nas primeiras Gualterianas «ressurgidas», em 1906, percorreram a cidade 12 Bandas Filarmónicas. É um exemplo recuado, mas quem assistir aos 3 dias das Gualterianas pode fazer uma comparação com estes tempos. Uma Banda Filarmónica é um agrupamento que, economicamente fica dispendioso. Julgo, sem certeza, que muitos instrumentistas destas formações serão donos do seu instrumento, o que não acontecia antes. Era a Associação Filarmónica quem adquiria o instrumental todo. Os músicos das Bandas, por outro lado, são pessoas com formação musical, muitas vezes, para não escrever quase sempre, saídas das escolas de música ou ainda em formação. Isto permite que o repertório que elas executam, possa ser um pouco mais exigente. Lembro-me de ouvir músicos a afirmar a qualidade da sua banda por conseguirem interpretar duas peças comuns a quase todas as filarmónicas: o 1812, uma abertura de Tchaikovski e o Tannhaüser, outra abertura, mas de Wagner quer uma quer outra com bastantes exigências técnicas e interpretativas. Eram obras quase obrigatórias para a Banda se afirmar de qualidade.
“O ensino articulado e o ensino integrado permitem mais oferta e diversidade a quem goste de música.”
Nota-se mais jovens a aderir à música, tocando instrumentos variados?
Sim, naturalmente. Hoje, o ensino articulado e o ensino integrado permitem mais oferta e diversidade a quem goste de música. Há seis anos, quando coordenei e apresentei uns concertos de música feita para Guimarães e que incluí na obra Hinos e Marchas Históricas de Guimarães, a orquestra que interpretou esses hinos e marchas era constituída por alunos e alguns professores do Conservatório de Guimarães. Isto revela que a música instrumental que se ensina se reparte por vários instrumentos e não só, como era antes e maioritariamente, pelo piano e violino. Numa actividade recente no Paço dos Duques de Bragança, integrada no Dia dos Museus e a pincelar com momentos musicais uma visita que dirigi, mostrando e comentando a Música nalgumas peças das colecções do Paço, lá tive uma menina a tocar fagote, por exemplo.
Que influências sentimos na música. São as mesmas de outrora?
Hoje, numa cultura global, já se não encontram influências de um só tipo na música. Penso estarmos a falar da tal música erudita, porque nos outros géneros, não me pronuncio. A música é compartimentada em períodos e os estilos destes períodos seguem os estilos de outros países, mas com nenhum em exclusivo. Diferente de antigamente em que já tivemos, por exemplo no barroco português, o italianismo, a que se seguiu nos finais do século XIX e princípios de XX, alguma influência alemã, por exemplo.
📸 GA!
Que rumo seguirá o ensino da música em Guimarães, incluindo o canto?
Quero apostar que o ensino da música em Guimarães está devidamente solidificado e estruturado de forma a permitir esperança na qualidade dos profissionais que aqui se formarem. E por falar em canto, quero homenagear o trabalho e a dedicação da professora Janete Ruiz que deu corpo a um projecto coral com excelente qualidade tanto nacional como internacional. Estou-me a referir aos Jovens Cantores de Guimarães que honram a música da cidade e são um exemplo de excelência do que se produz musicalmente em Guimarães.
Será sempre mais amador – no sentido do que ama – ou mais profissional?
A cidade, pelo seu tamanho e pela oferta de saídas profissionais na música, tão cedo não consegue fixar os jovens que se formem no Conservatório. Ficarão alguns com vocação para o ensino, outros, a par da música, enveredarão por outros cursos que lhes permitam melhores saídas laborais. De maneira que acho que para além dos que vão fazer profissão da música, tanto no ramo instrumental como no ensino, vocacional ou genérico, passará sempre também pelo campo do amadorismo naqueles que gostam de música mas escolhem outras profissões.
Conhece os jovens que hoje se afirmam na Europa musical?
Das minhas relações directas e de amizade, inclusive, conheço três: o Emanuel Salvador, violinista e um dos elementos-chave do «quarteto de cordas de Guimarães», a residir na Polónia (a esposa é polaca), a Inês Marques, violinista, que estudou na Alemanha e, julgo, toca numa orquestra austríaca e o Pedro Minhava, que estudou em Viena e toca lá numa orquestra.
O curso sobre o património musical vimaranense organizado pelo Museu Alberto Sampaio valeu a pena?
Estes projectos valem sempre a pena. E é um projecto a repetir. Decorreu em cinco sessões, três delas no Museu Alberto Sampaio, uma na Sociedade Martins Sarmento e, a última, no Paço dos Duques de Bragança. Julgo que os participantes, a partir de agora, irão olhar com outros olhos para o janelão da Igreja da Oliveira onde residem 24 anjos músicos e irão visitar com outros olhos as peças que se admiram no Museu Alberto Sampaio e no Paço dos Duques de Bragança. São passeios culturais pela história da cidade através das obras de arte que a cidade tem.
O que descobriu e sentiu neste curso?
Descobri, acima de tudo, que há um grande desconhecimento neste assunto. Já me pronunciei sobre a pouca importância que muitos atribuem à música. Este percurso também serviu para demonstrar que os mais antigos tinham outra consideração e valorização sobre ela. São passeios culturalmente diversificados porque a música tanto se encontra nas peças de ourivesaria, em baús para enxovais de noivas, em pinturas temáticas que tanto incidem em cenas bíblicas como de mitologia greco-romana. Esta diversidade obrigou-me a uma actualização de alguns conhecimentos que tinha arrumados e os tive que trazer à tona para me sentir à-vontade nas explicações. Foi uma actividade cultural que me deu imenso prazer em participar nela e, com certeza, que terá uma continuação.
📸 GA!
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