A II Convenção do Chega trouxe de novo para a ribalta a questão do aborto, e não me refiro à moção apresentada por Rui Roque que foi rejeitada. Refiro-me às moções estratégicas Inv(f)erno Demográfico e Mulheres Chega, aprovada por 231 votos a favor e 139 contra, segundo o Jornal Observador.
Com a primeira moção ficamos a saber que o aborto é, afinal, o verdadeiro responsável pelo inverno demográfico que se instalou no nosso país há mais de cinco décadas. Para dar “lugar à primavera demográfica que Portugal necessita”, a militante do Chega propôs recorrer à velha táctica estalinista de matar o homem (aborto) para resolver o problema.
Com a segunda moção ficamos a saber que as suas subscritoras são antifeministas e antiaborto, sem “medo de rótulos” ou de “linchamento público”. Ou seja, o que as militantes do Chega nos estão a tentar dizer é que as mulheres que usam o direito ao seu próprio corpo também não devem temer vir a ser rotuladas e linchadas na praça pública.
Bem que me avisou a minha avó quando dizia que o mundo está cheio de pessoas com boas intenções, mas implacáveis, tão empenhadas em defender os seus pontos de vista como a Inquisição Espanhola.
Sucede, porém, que o útero das mulheres não é pertença de partidos, governos, religião, ideologias de género ou outras, e muito menos incubadora para benefício do patriarcado, pelo que chega a ser ultrajante o uso ad nauseam dos direitos reprodutivos da mulher para inflamar paixões, angariar fiéis ou apelar ao voto.
Se é verdade que todo ser humano nasceu de uma mulher, é igualmente verdade que nenhuma mulher nasce mãe. Significa isto que não é por ser o veículo da prole que as mulheres estão obrigadas a dar à luz.
Tanto assim que para algumas mulheres dar à luz desperta-lhes sentimentos de plena realização, amor, orgulho e satisfação íntima, ao passo que para outras gera desespero, raiva, frustração, vergonha, repúdio e desilusão. Há mulheres que preferem adoptar filhos a tê-los, assim como há mulheres que encaram a maternidade como uma forma de opressão, ao limitar-lhe os movimentos e independência. Outras há que até desejam tornar-se mães, mas têm medo do processo da gravidez e do parto, e ainda mulheres que apenas ponderam ter filhos em razão do desejo da pessoa com quem estão.
Não obstante, há quem insista em obrigar a mulher a parir através da ingerência autoritária do Estado na vida privada ou segundo códigos canónicos no domínio da procriação.
Não quero com isto dizer que devemos ignorar preceitos religiosos ou motivações pró-vida. Pelo contrário. Embora seja uma agnóstica que apenas venera a mãe natureza, reconheço a superioridade ética e moral das doutrinas religiosas que defendem a sacralidade da vida, e concedo que a fé tem consequências positivas quando unifica grupos, proporciona conforto aos seus membros, promove a caridade bem com um comportamento mais respeitador da lei.
Contudo, numa democracia laica somos livres de acreditar no que quisermos, pelo que a religião não pode impor os seus dogmas, crenças e valores aos não crentes. Caso contrário, estamos perante uma ideologia dogmática que pretende colocar a dignidade do crente acima da dignidade do não crente, a quem exige a sua obediência incondicional. Para alguns não lhes basta ter um Estado próprio – Vaticano -, ao qual pagam o preço pela sua fé.
Admito, todavia, que o aborto deva ocorrer dentro de uma matriz de consciência individual e responsável, mas sempre dentro de um enquadramento legal que respeite o direito à autodeterminação da mulher, consagrado na Constituição da República Portuguesa, bem como em Tratados e Convenções Internacionais, dos quais Portugal é signatário.
A verdade é que em termos legais, até hoje, nenhum tribunal reconheceu o embrião ou o óvulo fecundado como pessoa para fins legais. O direito à vida tem sido interpretado como o direito que existe a partir do nascimento.
No acórdão n.º 346/2015, por exemplo, o Tribunal Constitucional é peremptório quando afirma que a mulher e o nascituro se apresentam como uma unidade. E não deixa dúvidas quando declara que “é a mãe que carrega o feto e o acompanha até ao seu nascimento. No fundo, é o seu corpo”.
Ainda assim, os procedimentos previstos na Lei 16/2007 de 17 de Abril, que torna lícito o aborto, estão longe de conferir à mulher o que Stuart Mill considerava soberania de cada um para decidir de acordo com a sua própria mente e corpo.
Com efeito, a Lei que diz que cabe à mulher – e só à mulher – decidir se quer, ou não, avançar com a gravidez, não a protege de situações preconceituosas, discriminatórias, paternalistas e estigmatizantes. A livre escolha é, afinal, uma escolha condicionada, devido a uma burocracia kafkiana que implica múltiplas consultas e deslocações e na qual o SNS não garante o direito de acesso a todas as mulheres para efeitos de IVG, conforme denunciado aqui, aqui, aqui e aqui.
A Lei criada para combater o flagelo do aborto clandestino, não impede a sua prática, como podemos ver aqui, mas praticamente zerou o número de mortes de mulheres por abortos clandestinos.
Posto isto, regressemos à Convenção para perguntar às militantes do Chega como pretendem obrigar as mulheres a parir? Perseguindo e rotulando as mulheres que decidam por termo à gravidez de criminosas e de pecadoras? Acusando as mulheres que não pretendem conceber, dar à luz ou ter filhos de egoístas, hedonistas, putas ou de sanidade questionável? Apontando a arma do arrependimento às têmporas das mulheres trabalhadoras que adiam a maternidade? Obrigando uma aluna do segundo ano de uma universidade a desistir do curso para ter filhos? Recrutando o útero das mulheres para benefício da nação?
Há uns anos, Peter Costello, apelou às mulheres australianas que tivessem um filho para a mãe, um filho para o pai e outro para o país, em troca de um bónus de US $ 4.000 por bebé (3.400 euros). Ao mesmo tempo investiu milhões de dólares em programas de apoio ao aborto (legal desde 1970). O primeiro resultou num baby boom.
O segundo reduziu drasticamente o número de abortos. O título desta crónica inspira-se nele, mas tem como propósito mostrar às militantes do Chega que associar aborto com Inv(f)erno Demográfico é uma patranha de muito mau gosto.
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