Tento notar as sincronicidades. Elas me ajudam a sentir os pés no chão, quando jogam luz no que me escapa por teimosia, por ingenuidade, por negligência etc; uma vez esclarecida, sei que é possível aproximar-me um pouco mais do centro de uma questão.
Desconfio que a realidade, na sua inteireza, anda por ali, a seguir às sombras que uma pessoa vai conhecendo. É com ela, a realidade, que eu pretendo lidar. Fosse uma palavra masculina (mundo, universo, meio) e não a gasta e no entanto nunca esgotada realidade, diria que minha descoberta acerca do poder das sincronicidades encaixa no verso da música que a Elis cantou: “é com esse que eu vou”. Pois eu vou ao sabor da realidade. Ou, como diria minha paixão, Paulinho da Viola, “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.
Numa tarde de trabalho há mais ou menos uma semana, assisti a uma cena desconfortável entre um adulto e uma criança. Estariam a passear na cidade.
O estilo no andar e no vestir davam a entender alguma descontração. Mas o que poderia ser uma peça de roupa de tributo a uma banda ou a um filme produziu em mim um clique: a t-shirt do homem adulto trazia as palavras no mercy. Não estava delineada nela uma cobra amarela preparada para dar o bote e, então, excluí a hipótese de o homem ser fã da série da Netflix. O recado posicionado à altura do peito dele estava na verdade vazio de contexto, era apenas um “sem piedade”. Apenas? O recado é por si só eloquente.
Li rapidamente as duas palavras da t-shirt e reparei que o homem gesticulava muito. Gesticulava e espremia o menino contra uma montra. Quando o menino tentava se desvencilhar, o homenzinho seguia com o corpo todo a esquiva do menino, quase como numa coreografia da série Cobra Kai (essa parte das longas lutas de golpes bem desenhados é justamente a parte que não me agrada).
Mas por que “dançavam”? Muito provavelmente porque o menino lera o sinal colado à porta do estabelecimento comercial dentro do qual eu estava. Lera – esboçando o gesto quase espontâneo de quem tem a certeza de que aquele era o lugar onde a família desejava entrar – e então empurrou a porta.
O menino tinha lido a situação e tinha chegado a mão à maçaneta, para abrir a porta. Não estivesse ali o adulto, estaríamos a esta hora todos aniquilados… a bomba teria explodido, o mal teria contaminado universo e multiverso, sei lá. Quantos anos o menino aparentava? Uns 6 ou 7.
Aproximou-se dos dois um senhor de idade, nem minimamente interessado na cena da repreensão, embora parecesse mais uma pessoa daquela família.
Estavam a caminhar, sol a pino, e eu compreendo que o calor e o esforço das deslocações com as crianças impliquem algum cansaço. Mas esforço e calor contam, também, para as crianças. Se a tarde soa impossível para os adultos que pagam as despesas do passeio, que procuram lugar de estacionamento para o carro da família, depois de se terem orientado pelo GPS entre acertos e erros de rota, para a criança talvez a tarde passada em constantes recriminações produza marcas mais difíceis de ultrapassar.
E não por serem chatas, as crianças – muito menos por serem crianças mais moles do que as crianças de outras gerações -, elas tentam com espontaneidade. O que para nós costuma ser resultado do esforço calculado, bem ou mal tolerado, para elas é mais leve, é apenas tentativa e erro, é vivacidade.
Como ainda durou mais do que eu esperava, a cena me fez suspirar. É impressionante que uma criança seja pressionada por causa de gestos tão banais e tão inocentes. Não gosto da forma como muitos adultos se comportam na relação com as crianças, nesta sociedade. Fazem desaparecer toda a concentração da criança no lado bom do aprendizado. O erro cabe nesse aprendizado. A surpresa também cabe. A hesitação e a curiosidade cabem, sem dúvida.
Para quem não conhece, recomendo um texto curto e ensolarado de Clarice Lispector, mulher inteligentíssima para as etapas da formação, sobretudo, mas igualmente para a observação da vitalidade nas pessoas mais velhas.
Em Tentação, Clarice capta o encontro feliz de duas criaturas (uma delas é uma criança) e nos mostra beleza, assombro e o imponderável. Houve festa (Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria) e prazer adiado (Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina).
Houve o possível de encantamento e de quebra, de silêncio e de comunicação; ficou para a posteridade um retrato lindo a serviço da nossa imaginação, tão mal povoada, quando se trata de acolher e de acalentar a criança e as suas boas intenções no caminho do crescimento. Viva Clarice! Viva a vibração, suave ou intensa, que todas as sincronicidades nos oferecem. Viva a nossa capacidade de lermos o momento e o nosso interminável crescimento.
© 2022 Guimarães, agora!
Partilhe a sua opinião nos comentários em baixo!
Siga-nos no Facebook, Twitter e Instagram!
Quer falar connosco? Envie um email para geral@guimaraesagora.pt.
A crônica CONCENTRAÇÃO de Betina Ruiz (publicada em 27/08/2022) faz-nos pensar em tantos momentos corriqueiros… E muitas vezes não nos damos conta da especificidade desses momentos que nos levam a divagar por MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS !
Parabéns, Betina, pela leveza de teu texto e pela acuidade de teu olhar.
Dagoberto Rodrigues de Souza – Brasília – DF
Muito obrigada pelo comentário, Dagoberto! O momento nos surpreende com mais alguma coisa que é preciso aprender… Um abraço.