É já tarde e tolda-se a vista nos ténues reflexos de esparsos raios de um sol desmaiado em vidraças sem alma.
A cidade está fria, sépia e cinza, mergulhada num crepúsculo sem sentido que justifique o ser cidade; não há cidade sem maquinar, fervilhar, lombrigar de gente nas ruas-montra, nas ruas-ruas. A cidade triste, prostrada, alheia às coisas e aos brilhos, aos saldos ou aos esparsos passantes, novos ou velhos nas praças e jardins, nada vai fazer mudar nos olhos afundados do velho vendedor de castanhas à dúzia de anos naquela esquina a lançar odores de um outono sem festa das colheitas.
O céu está turvo, carregado, chamando as luzes a acender sobre os passeios desalentados, plenos de folhas pousadas no ingrato papel de toldar o chão de uma tapeçaria multicolor que ninguém vai ver nesta réstia de ano que tarda cumprir-se num lento estertor.
Parece outono. Parece de novo aquela antecâmera das chuvas e frios que antes empurravam as gentes para os cantos flamígeros das casas e para as longas conversas sobre outros tempos que foram, e serão, até que o Natal das árvores cintilantes ressurgisse nos sorrisos de pequenos e velhos à volta de embrulhos com as barrigas cheias de uma qualquer fugaz alegria. Pois, o frio este ano nem frio é que possa empurrar a alma para o calor da família ou sequer prometa, um poucochinho mais à frente, o reflorir primaveril que a natureza na sua prodigiosa magia nos trazia todos os anos.
É Outono.
Mas é já tarde e as ruas vazias de gente, fantasmas e sombras indefinidas, apenas lembram as noites tardias alcoolizadas nos festejos, ou no lavar de lágrimas, em que tudo à volta parecia repousar há muito e a alvorada parecia mais perto que o leito.
Sim, é outono, e muitos outros outonos negros, invernos e infernos, viveram homens e mulheres que nos puxaram as orelhas pelas tardias e alcoolizadas chegadas a casa, nos deram ser na generosidade de instruir e amar, de dar vida à vida superando as barreiras que os mistérios da natureza, ou os desequilíbrios dos humanos, sempre colocaram, quais pedras de tropeço, nos passadiços da existência.
Agora é a nossa vez de neste vale de trevas suspensas, neste recolher obrigatório para uma mais longa noite, neste qualquer espaço onde dor e morte cumprem o seu papel na lógica da existência, fazer refulgir o sol. Agora, é tempo de elevar o pensamento e a corajosa vontade não atirando ao chão a toalha que decora a mesa de um mais profundo e autêntico Natal; é tempo de uma verdadeira celebração para algo maior que a mera sobrevivência e brilhos vazios e se faça celebrar a dignidade da vida. Será, se assim a providência e a vontade se unirem, o tempo de um equinócio tão rejuvenescedor e transcendentalmente humano, que se assemelhará à divindade que faltava para despertar o mundo para uma verdadeira primavera.
Sim, é sem dúvida outono, um ponto ínfimo de confinamento e superação da morte face à dimensão inigualável do mais que possível renascimento para uma solidária, verdadeira e irmanada vida.
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