O embuste do “Tratado” de Zamora

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O dia 05 de outubro é um feriado nacional em Portugal, instituído para celebrar a Proclamação da República Portuguesa em 1910, e foi um dos feriados civis do decreto de 1911 que criou os feriados da Primeira República.

Apesar de ter sido estabelecido para comemorar a Implantação da República, muitos portugueses invocam-no como o dia “emblemático” da Fundação de Portugal, por coincidir também com o dia do colóquio entre D. Afonso Henriques e seu primo Afonso VII, ocorrido em Zamora no ano de 1143, sob os auspícios do Cardeal Guido de Vico; reunião essa que, no ano em curso, completa o seu 882.º aniversário.

Será que este encontro histórico entre os primos merece ser considerado o dia da Fundação de Portugal?

O historiador José Mattoso (in D. Afonso Henriques, 212) referiu-se a ele com a seguinte apreciação: “Tem sido considerada como a reunião que selou o acordo entre Afonso Henriques e Afonso VII, que marcou o reconhecimento pelo segundo da dignidade régia do primeiro, e que permitiu a celebração de um tratado, que talvez incluísse uma repartição dos direitos de conquista sobre os territórios muçulmanos, mas do qual, infelizmente, não existe nenhum texto”.

E mais à frente, na mesma obra, acrescentou: “Com efeito, existem dois documentos leoneses da chancelaria de Afonso VII, datados desses dias, os quais mencionam a presença de Afonso Henriques e lhe dão o título de rei. Dizem expressamente que foram redigidos em Zamora na ocasião em que Guido de Vico, Cardeal da Igreja Romana, celebrou um concílio em Valladolid e veio a um colóquio do rei de Portugal com o Imperador”.

E na página seguinte (213) tirou a seguinte conclusão: “Temos de considerar a reunião de Zamora como um encontro promovido pelo legado para apaziguar eventuais tensões entre os dois soberanos, uma vez que o acordo de Valdevez fora provisório, e para os exortar a conjugarem os seus esforços na luta contra os almorávidas, que, nessa altura, davam já provas de enfraquecimento político e militar”.

Por sua vez, Alexandre Herculano (in História de Portugal, Livro II, página 451), quando aludiu ao colóquio de Zamora entre os dois príncipes, questionou as condições do mesmo, e na resposta afirmou: “Nenhum documento especial que no-lo diga chegou até nós; mas o que se pode asseverar é que o imperador reconheceu o título de rei que seu primo tomara…”

Deste modo, fica assegurado pela pena dos mais ilustres historiadores nacionais que não existe nenhum texto que comprove que nesse encontro tivesse sido negociado entre ambos os monarcas o desmembramento do reino de Leão e a consequente criação do estado independente de Portugal, uma vez que subsistem, unicamente, dois documentos (notícias) que se limitam a referir a presença de Afonso Henriques e lhe dão o título de rei. 

Será que o título régio atribuído a D. Afonso Henriques nas tais notícias tem mais valor que o tratamento que lhe é dado na ‘Chronica Adephonsi Imperatoris’?

A propósito do tratamento que os senhores de Portugal – D. Teresa e D. Afonso Henriques – mereceram na ‘Chronica Adephonsi Imperatoris’, durante o período em que o governo deles se cruzou como reinado de Afonso VII, a historiadora Maria do Rosário Ferreira, salientou o seguinte: “É de notar que o título de Regina, ou de Rex, acompanha sempre as duas personalidades referidas qualquer que seja a cronologia e o contexto em que surgem”.

E sublinhou, ainda, que “se relativamente a D. Teresa, filha de rei, se poderia argumentar que a concessão desse tratamento não correspondia a mais do que uma distinção honorífica sem conteúdo político, já no que toca a D. Afonso Henriques a mesma lógica não é aplicável”.

Esta circunstância justifica a inequívoca perceção de que D. Afonso Henriques já se tomava por rei muito tempo antes de chegar a Zamora; não adquiriu esse título nos dias em que por lá permaneceu!

“Não se encontra uma única situação, ou ao menos uma ténue insinuação, que sugira estar em causa a soberania de Afonso Henriques sobre o território português.”

E como reforçou a ilustre historiadora, “não podem restar dúvidas sobre o facto de, nesse momento, a realeza de Portugal estar já explicitamente instituída nos círculos oficiais da cúria leonesa”, para concluir que “ao longo da crónica, não se encontra uma única situação, ou ao menos uma ténue insinuação, que sugira estar em causa a soberania de Afonso Henriques sobre o território português”.

Todas estas considerações tendem a demonstrar que, em 1143, D. Afonso Henriques já exercia soberania plena em Portugal; sem qualquer sujeição à coroa leonesa, muito provavelmente desde que tomou as rédeas do poder, em 24 de junho de 1128.

Além disso, contra a opinião que invoca o nascimento de Portugal em 05 de outubro de 1143 pode, ainda, acrescentar-se a “voz do silêncio” do grande escritor e pensador do século XVI.

Na verdade, o facto de Luís de Camões – o autor da epopeia lusitana e profundo conhecedor da História Universal – não ter concebido um único verso no canto III de ‘Os Lusíadas’ a respeito do “tratado” de Zamora, permite intuir de pura ficção a narrativa daqueles que nele vêem a origem de Portugal.

De facto, mais importante do que descobrir quando D. Afonso Henriques começou a usar o título de rei, é situar no tempo o momento em que encetou a prática de atos régios nos limites geográficos do território de seu senhorio.

E os sinais mais evidentes de que D. Afonso VII e D. Afonso Henriques viveram numa situação de perfeita paridade, sem dependência de um para com o outro, são-nos dados pelo próprio Alexandre Herculano na sua obra referida (página 294), quando expõe um conjunto de epítetos acerca da postura que Afonso Henriques assumia perante o seu primo: “O infante de Portugal quando solta o seu grito de guerra ao atirar-se por entre selvas de lanças sarracenas, como o rei das feras, busca solitário a sua preia; arca peito a peito com o islamismo sem pedir socorro aos outros príncipes, que já tem na conta de estranhos; na corte do imperador ninguém o viu nunca; nas assembleias políticas da monarquia o seu lugar está sempre vazio; os cofres do Estado jamais se abrem para receber os tributos municipais das províncias portuguesas; o orgulhoso Afonso VII… nem uma só vez se intitula dominador de Portugal”.

Assim, forçoso é concluir que o “tratado” de Zamora não passa de um embuste cronológico acerca da independência de Portugal e, como tal, deve ser removido da narrativa “didática” dos manuais escolares.

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