Alguns leitores de uma vida inteira assumiram-se como indisciplinados quanto aos livros de que se foram alimentando. Montaigne escreveu sobre o tempo dispensado a um livro como tempo do encontro imediato: o que não tem lugar à primeira não terá lugar porque, do contrário, puxaria o leitor pelo caminho da obstinação ao passo que o caminho de descoberta que ele legitimava era feito de alegria. José Mindlin, grande colecionador de obras comuns e raras, reportou esse traço do filósofo numa publicação de 1997.
Considero importante que gente dedicada aos livros se apresente como leitor(a) indisciplinado(a). Não sugeriria a alguém que cuidasse da roupa interior irregularmente ou que comesse legumes só uma vez ao mês, sem variar entre feijão, grão de bico, ervilha, etc. Já nas questões pessoais que envolvem o gosto – livro depende de gosto -, vejo a indisciplina como sinónimo de ecletismo e de liberdade.
Posso sugerir ao leitor a conversa íntima e silenciosa com autores nacionais e estrangeiros, de BD e de poemas, de cartas e de biografias, de ontem e de hoje, muito descritivos ou lapidares. Adília Lopes e Honoré de Balzac, Lourenço Mutarelli e Marianne Moore, Gil Vicente, Matilde Rosa Araújo, José de Alencar, Ernest Hemingway, Ferenc Molnár e muitos outros.
Desconfio que a indisciplina na opção pelos livros seja mais oportuna, agora que é gritante a necessidade de substituir a polarização por algo mais consistente e consequente. Ao não pregar o meu caminho como melhor e único, estou a praticar respeito e a valorizar a conjugação de interesses que subjaz ao direito de escolha. Abro portas para a visão alheia, agrego conhecimento e evito preconceitos (no mundo editorial, como nas escolas, eles sobram).
Se controlo ao extremo e calculo muito, atraio quem confia em mim para diálogos vazios, como chuva no molhado. Por isso, nem os livros da moda, por serem da moda, nem os livros de sempre, por preguiça ou medo de variar na escolha. O exercício da escolha coloca os livros em cima da mesa.
Vamos aos livros com sentido e consentidos, sabendo que vale a pena ler os clássicos pois o tempo os consagrou em função de unirem o original ao profundamente familiar; ler textos feitos por mulheres, para corrigir o erro histórico de não dar ouvidos à palavra feminina; ler para ir além desta vida de carne e osso e também para não se fechar diante das propostas menos terra-a-terra, como as da ficção científica.
Encerro este comentário sobre leitura com as palavras do colecionador com o qual o iniciei. Para ele, a relação com os livros era um bem de família, altamente estimado, basta saber que os livros eram adquiridos por ele e pela esposa Guita Mindlin e por vezes eram recuperados por ela.
“Não importa o que se leia no início, porque, uma vez criado o gosto, ele se refina… o prazer da leitura deve ser proclamado por todos os meios e modos, e para isso seria importante o papel da televisão e de toda a mídia, que assim pagaria boa parte dos seus pecados”.
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Olá Betina Ruiz, boa tarde!
Meu nome é Sônia, vivo em Guimarães há 4 meses vinda do Brasil.
Tenho 74 anos e gosto de literatura.
Minha filha, que também vive aqui há mais tempo, me enviou seu post.
Vc faz algum tipo de palestra ou cursos presenciais?
Me interessam muito.
Obrigada.
Olá, Dona Sonia. Que prazer ler o seu comentário! Ainda não nos vimos pelas ruas de Guimarães, mas espero que haja essa oportunidade. Neste momento eu não tenho sessões sobre livro marcadas, mas assim que alguma for combinada, eu farei chegar a informação à senhora. Obrigada pela leitura e pela delicadeza da sua mensagem.
Que belo texto, onde a arte e a vida real são uma coisa só, que pondera com clareza a importância, a urgência da sociedade ocidental migrar do rudimentar modo competitivo – que a muitos exclui e nada acrescenta ao planeta e ao tecido social além da destruição – para uma vida colaborativa, uma sociedade onde a felicidade seja um bem comum, uma sociedade que trabalhe nesse sentido. Que em última análise é o caminho da natureza, o caminho da paz, da harmonia. Como eu vejo o Universo tende a beleza, e a beleza é perpétua.
Um belo texto para se começar o dia, obrigado Betina Ruiz!
Muito obrigada pelo comentário, Christophe. Desafio aceite, decisões tomadas, o importante é ter havido abertura e alegria. É realmente o que importa. Os livros são realizações melhor ou pior conseguidas, que existem em um número elevadíssimo, difícil mesmo de precisar. Irmos aos que nos ajudam a caminhar melhor é jogar a nosso favor. Ler para fazer frente a um projeto, muitas vezes de competição, como você diz, a meur ver não dá muitos frutos.
Importante comentário sobre o injustificadamente homogêneo mundo editorial, que reflete nas escolas.
Linda homenagem a Guta e José, bem como à importância que há em “encher de confusão as prateleiras”, como diz Caetano Veloso na canção ‘Livros’.
É isso mesmo, Renato! Sempre que encontro alguma defesa da diversidade e da autenticidade, sorrio. O Snoopy tem uma tirinha muito boa sobre o parecer desalinhado e a importância de jogar nesse time. Os muito arrumadinhos, de acordo com a tirinha, não podem tomar conta do mundo! Viva a variedade! E viva quem, como os Mindlin, tem olhos para reunir o bom material variado e espalhado!