(…) Pois os nossos maiores, imolados animais que pastavam naqueles lugares onde se estabeleceriam opidos ou acampamentos fortificados permanentes, examinavam-lhes os fígados e, se á primeira vista surgiam lívidos e adulterados, imolavam outros para tirar dúvidas se estavam contaminados por doença ou por causa da pastagem. Tendo experimentado várias vezes e ficado convictos da natureza íntegra e sólida dos fígados na sua ligação à água e ao pasto, aí levantavam as fortificações, todavia, se verificavam que eles estavam doentes, pensavam que também para os corpos humanos seriam prejudiciais os recursos de água e de alimento provenientes destes lugares, e, em consequência, transmigravam e mudavam de zona, procurando em todas as coisas a salubridade. Vitrúvio in Tratado de Arquitectura, séc. I a.C (trad. Justino Maciel, 2002).
Em De Architectura, tratado em dez volumes sobre teoria e pratica desta disciplina, o arquitecto romano Vitruvio, descreve a metodologia adoptada na escolha do sítio adequado para implantação e fundação das cidades. Para os Romanos, a observação das entranhas do gado deixado a pastar livremente durante vários dias nos terrenos em análise, era reveladora das características físicas, químicas e biológicas do lugar. Sobre a natureza e compatibilidade dos terrenos para construção o arquitecto Raul Lino (1879-1974), no livro Casas Portuguesas – Alguns Apontamentos sobre o Arquitectar das Casas Simples (1), adverte para a inedequabilidade dos terrenos alagadiços e com entulhos, assim como dos terrenos com bancos ou veios de argila e lençóis de água subterrâneos, motivos pelos quais aconselhava uma análise prévia dos terrenos, por especialistas. Embora apresentando distintas metodologias, os escritos tanto de Vitruvio como de Raúl Lino informam-nos de uma importante tradição com mais de dois mil anos inerente ao processo construtivo relacionada com uma qualidade que, apesar de não ser de reconhecimento imediato, porque não pertence ao domínio físico (apesar de sobre ele actuar), seria determinante na escolha do lugar – a salubridade. A formação e constituição de aglomerados em locais específicos do território, não resulta então somente das suas características topográficas e orográficas associadas a vantagens estratégicas de locais a meia encosta e a proximidade a cursos de água, ou climatéricas pela favorável exposição solar, mas com a qualidade destes factores: a salubridade que advém da qualidade das terras, das águas e do ar, eram importantes indicadores e garantias do bom funcionamento e da saúde das cidades e dos que nela viriam a habitar. Salvo algumas diferenças de critério de fixação no território em função de modelos específicos de expansão e colonização, no essencial esta pratica foi-se mantendo ao longo da história. Com o desenvolvimento da mecanização e consequente aceleração promovida pela revolução industrial, a questão da salubridade enquanto indicador de qualidade, foi sendo gradualmente substituída por outros factores, em favor da quantidade relacionada com um novo e emergente paradigma de bem estar económico e social que caracteriza o mundo moderno. Os lugares para construção são hoje decididos em gabinetes e definidos por planos em função de motivações políticas, administrativas, burocráticas e financeiras, sendo os factores sensíveis e vitais substituídos ou relegados para último plano. Sendo certos hoje os efeitos nocivos e os prejuízos – inclusive e, paradoxalmente, de ordem económica – que esta situação acarreta, sabemos também – e já não são apenas suspeitas, mas evidencias concretas – da necessidade de desacelerar e inverter gradualmente este processo. Por isso, compete a todos nós, na dupla condição de habitantes e agentes transformadores do território, o imperativo do seu estudo através de várias técnicas, saberes e ciências, sensíveis e físicas, por forma a conhecer e reconhecer em cada lugar as suas qualidades e propriedades específicas e, em última instância a sua vocação, para que consigamos diariamente realizar a manutenção do equilíbrio entre paisagem natural e transformada. A observação da paisagem é neste sentido, uma ferramenta essencial para quem deseja operar esta transformação introduzindo na sua vida activa, uma vida contemplativa (2), indutora de mecanismos de consciência e identificação com a realidade global da paisagem que habitamos. Este prisma de conhecimento permitirá a actuação em conformidade com a complexa realidade que nos rodeia, para que finalmente possamos cumprir a nossa missão de jardineiros deste território em contínua transformação.
(1) Sobre este assunto ver Raul Lino. Alguns Apontamentos sobre o Arquitectar das Casas Simples. Lisboa: Valentim de Carvalho, 1933.
(2) Conceitos desenvolvidos pelo filósofo Byung-Chul Han em O Aroma do Tempo. Lisboa: Relógio d’Agua Editores, 2016.
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