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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Do gabinete para o atelier: Um olhar apaixonado pelo Barro

Economia

Acompanhada pelo som do rádio na cozinha, Maria Fernanda Braga vivia um dia como todos os outros. Recém chegada a Guimarães, não esconde o entusiasmo que sentiu ao ouvir as palavras que acabaram por ditar um futuro com o qual nunca sonhou.

O locutor anunciava a abertura de um Curso de Olaria integrado no programa de Conservação do Património Cultural. “Eu já conhecia a Cantarinha dos Namorados e achei muito interessante e estimulante, eu gosto de desafios e inscrevi-me nesse curso”, diz a ceramista.

Nascida e criada no Algarve, a artista foi outrora desenhista técnica numa fábrica construtora de máquinas para a indústria corticeira. E porque “às vezes as nossas opções de vida levam-nos a tomar estas decisões, a ex-desenhista decidiu deixar a sua terra e abraçou a cidade do marido, à qual passou, também, a chamar de “casa”.

Guardiã de tradições, as suas mãos têm permitido conservar a icónica Cantarinha dos Namorados, o que não a impede, contudo, de criar também peças mais contemporâneas. A somar mais de 23 anos de carreira, afirma “o que mais me entusiasma é o facto de eu pegar numa bola de Barro e imaginar a potencialidade das formas que posso dar”.


A Olaria sempre foi a sua profissão?
Eu sou algarvia e a minha profissão era desempenhar desenho técnico numa fábrica construtora de máquinas para a indústria corticeira. Trabalhava no gabinete.

Como é que nasceu o interesse pela Olaria?
Eu sou algarvia e desempenhei esse cargo aqui no Algarve em que conheci o meu marido que é vimaranense. Então, às vezes, há opções de vida importantes e eu resolvi deixar a minha profissão, a minha terra e ir para Guimarães, sem nunca ter lá estado. Mas às vezes, as nossas opções de vida levam-nos a tomar estas decisões. Há 30 anos que eu vivo em Guimarães e depois fui iniciar a minha vida profissional. Não foi fácil. Houve um dia que eu estava a cozinhar na minha cozinha e ouvi na rádio que ia haver um curso de Olaria em 1997. Eu já conhecia a Cantarinha dos namorados e achei muito interessante e estimulante, eu gosto de desafios e inscrevi-me nesse curso. Esse curso estava dentro de um programa chamado CPC, ou seja, Conservação do Património Cultural para preservar a Cantarinha porque havia essa necessidade. Infelizmente, hoje, ainda existe a necessidade de se criar incentivos para dar continuidade às tradições. Eu apaixonei-me. Apaixonei-me pelo barro e aqui estou passado tantos anos.

De onde vem a inspiração para criar novas peças?
Levo um pouco das minhas vivências, das exposições que eu costumo frequentar, mas também a tradição. Gosto de aliar a tradição à modernidade. Assim que frequentei o curso, montei o atelier na Casa do Povo de Fermentões, foi uma pequena cedência de um espaço, um apoio que é muito importante e logo no início, quando comecei a frequentar feiras, houve o desafio de criar presépios, também é uma das minhas peças, não só a Cantarinha mas também os presépios.

📸 Direitos Reservados

É difícil ser artista em Portugal?
É. É muito difícil. É muito bonito olhar de fora, ver o trabalho, mas no concreto no dia-a-dia é muito complicado. Se eu não tivesse esta cedência de espaço, seria completamente impossível. Embora mesmo com este apoio, eu passe momentos muito complicados. Mas pronto, foi uma opção. E eu quis assumir-me como Oleira no século XXI, que como pode imaginar é difícil porque a Olaria já perdeu a função utilitária. Hoje em dia, é só mesmo decorativa e simbólica.

Já sentiu vontade de desistir?
Não, nunca! Eu sou muito perseverante. Acredito muito naquilo que eu faço e algo que é muito importante dizer, quando eu frequentei o curso eu assumi perante mim própria que teria de fazer daquilo a minha vida. Eu lutei e luto, é uma luta contínua, para conseguir realizar esse meu objectivo.

Sendo que este foi um trabalho muito associado aos homens, sentiu algum preconceito no início?
Não. Não senti. Nesse aspecto não.

O que é que a fez apaixonar pela Olaria?
O facto principal é eu segurar, hoje em dia, que já passou mais de 23 desde que sou Oleira, é o facto de eu pegar numa bola de barro e imaginar a potencialidade das formas que posso dar. Isso ainda se mantém em mim, esse fascínio.

É um processo muito íntimo, é ouvir o nosso silêncio, é descobrir.

Sendo um processo solitário, o que é que o Barro a permite descobrir sobre si, já que passa tanto tempo sozinha?
Gostei desta pergunta. Acho que ninguém me tinha feito esta pergunta e de facto é isso mesmo. É um processo muito íntimo, é ouvir o nosso silêncio, é descobrir. Ao longo dos anos sinto uma maior segurança. Ou seja, por um lado eu tenho contas a pagar, é o lado difícil da vida material, mas o facto de eu poder também ir chegar até aquele patamar em que eu estou a fazer aquilo que eu gosto, estou a dar vida ao Barro, estou a escutar-me a mim própria. Se nós colocarmos essas duas partes numa balança é este que vence. E porque tenho a sorte do meu marido me dar apoio.

📸 Direitos Reservados

Dificuldade acrescida devido à pandemia?
Muita. Muita dificuldade. Eu tenho imensas iniciativas com muitas instituições e de um momento para o outro fiquei mesmo a zero. Eu costumo ir a escolas, costumo ir à Fnac, costumo ir a bibliotecas e, de repente, fiquei fechada, sem nada. Então, resolvi, pela primeira vez, abrir o atelier à comunidade, em pequenos grupos de duas a cinco pessoas com segurança e tem sido muito gratificante. Eu sinto que hoje as pessoas têm a curiosidade de serem elas a fazer, a ter experiências e tenho recebido alguns grupos e estou feliz por isso.

Ainda há futuro nesta profissão?
Eu quero acreditar que sim. E posso dizer que o meu maior sonho seria encontrar alguém que se apaixonasse da mesma forma, especialmente pela Cantarinha que é a peça emblemática de Guimarães, gostava de transmitir o meu testemunho. A Cantarinha vai ser certificada na FIA, na Feira Internacional de Artesanato, em Lisboa, e a instituição que faz a certificação de peças de artesanato tradicionais vai fazer essa certificação e eu vou estar presente, claro.

Consegue nomear artistas que tenha como inspiração?
Não. Eu gosto de muitos artistas, mas um em especial seria muito difícil. Gosto muito do Jorge Vieira, acho-o um artista que me diz muito, mas não sigo nenhuma linha. Tudo para mim é importante.

Foram os workshops que lhe permitiram continuar o trabalho na Olaria?
Sim e também aproveitei para criar novas linhas de peças, novos modelos de presépios. Nunca estive parada.

Passa muito tempo no estúdio?
Ao longo destes anos todos, por exemplo, eu fiz imensas feiras no início. Hoje já tenho mais de 50 anos e a idade já é um factor que pesa, mas no início com as minhas filhas pequenas, tive de me ausentar de casa e sempre contei como o apoio do meu marido que foi fundamental. Isto é uma vitória nossa, não é só minha. Porque todos nos envolvemos de uma forma ou de outra e o meu marido sobretudo.

📸 Direitos Reservados

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