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Quinta-feira, Novembro 21, 2024
Betina Ruiz
Betina Ruiz
Investigadora, já desenvolveu projetos sobre a Literatura Portuguesa dos séculos XVII e XVIII, a Mexicana do séc. XVII e a Brasileira do séc. XX, professora com mais de 15 anos de experiência, biblioterapeuta dedicada a programas que procuram abranger principalmente leitores idosos e aqueles em alguma situação de vulnerabilidade, autora de textos académicos e ficcionais, pensados e criados ou em parceria com amigos e colegas ou como trabalho individual.

Como juntar os pedaços, a cada vez que precisamos recomeçar?

Vou começar pelo fim.

Em agosto de 1942, um homem (médico pediatra, pedagogo e escritor) deixou-se conduzir para a morte, a fim de acompanhar, amparando, 200 crianças órfãs sem outra sorte ou proteção, a não ser a que ele oferecia até aquele momento, num orfanato. 

“No dia 10 de agosto de 1942, …foi à frente das crianças, caminhando como numa procissão, para os trens que os levariam às câmaras de gás”.

O mundo estava em guerra fazia três anos. Muitas mais pessoas, civis e militares, ainda morreriam sob o efeito de variadas e violentíssimas ações. Estima-se que tenham sido 60 milhões as pessoas assassinadas durante a Segunda Guerra Mundial. 

Na Polónia, onde o homem e as crianças viviam, a dominação alemã era uma realidade, pois as vantagens no conflito bélico ainda estavam do lado dos países do Eixo. Não parecia ser possível conter os militares que, apoiados por um discurso nazi que se tinha imposto dentro e fora dos quartéis, subjugavam os povos apresentados, demagogicamente, como inferiores e desprezíveis.  

Sobretudo os judeus, mas também os ciganos e os indivíduos com deficiências físicas e mentais, os comunistas, os homossexuais e os negros foram perseguidos. Ao promover a ideia de que era importante experimentar métodos de limpeza racial, o partido nazista exacerbava a divisão entre as pessoas, assim como oferecia um pretexto para o ódio.

Afinal, não somos capazes de viver em paz uns com os outros nem sabemos o que é o amor.

Mesmo que num outro momento a Alemanha tenha vindo a pôr em prática uma política de reparações, face a esse gigantesco dano à democracia e à humanidade, cá estamos nós, praticamente oitenta anos depois da morte do nosso homem e das crianças daquele orfanato de Varsóvia, para mostrar que, afinal, não somos capazes de viver em paz uns com os outros nem sabemos o que é o amor.

Nada poderia ser mais distinto do dirigente do partido nazista Adolf Hitler, do que o homem que motiva este texto e cuja morte eu resumi ao máximo nas primeiras linhas. Quando faço tal afirmação, estou a pensar nos interesses genuínos pelos quais ele se mobilizou e estou a considerar, também, a empatia com que ele lidava com tudo de concreto no dia a dia das crianças.

“Eu posso criar uma tradição, em favor da verdade, da ordem, da disciplina, da honestidade e da sinceridade. Mas nunca hei de mudar a natureza da criança, como ela o é”.

Janusz Korczak, pseudónimo de Henryk Goldszmit, acolhia as crianças e dava-lhes autonomia. Em vez de criar uma atmosfera de medo, a fim de manipular uma grande massa de pessoas (como os nazistas faziam), dentro do orfanato mantido por Korczak e alguns colaboradores, a liberdade é que era encorajada: as crianças participavam num Parlamento, num Tribunal e num jornal, lado a lado com os adultos, entre eles o próprio Korczak. Isso significa que elas eram chamadas para a decisão (na qualidade de juízes, de políticos, de comunicadores), que eram respeitadas e tornadas mais independentes e justas, pois lá naquele espaço eram tidas como seres humanos com sentimentos, com vontades, com ideias e o direito a experimentá-las.

Korczak escreveu vários livros e se ele pensou, ao escrevê-los, que as crianças têm uma alma que deve ser compreendida, teve todos os anos de prática no orfanato – dirigido por ele desde o ano de 1914 até o ano de 1942, triste marco já referido neste texto -, para encontrar e aceitar essa certeza. Foi um longo período bem aproveitado. Valia a pena, sem dúvida que valia, uma vez que ele abdicou de propostas para fugir e deixar que as crianças morressem sozinhas. Estavam marcadas e, na cabeça da gente cruel e corrupta que as condenara, fazia sentido aliciar um homem com o estatuto de Korczak, para que não sucumbisse com elas.

Nós, que somos vigilantes no que toca a olhar para as notas das crianças na escola, para os resultados das crianças no desporto, para a aparência das crianças em eventos públicos, já alguma vez vimos uma criança, de facto? A Gestapo obrigou a todos os ocupantes do orfanato que o abandonassem depois de 24 horas do aviso de desocupação. Ao relatar esse episódio, Ben Abraham disse que de um lado estavam as súplicas, as lágrimas; do outro, risos cínicos. Quase os vejo. Falar de compaixão e de respeito pelas sensibilidades, hoje, faz algumas pessoas terem vontade de gargalhar…

De costas para uma educação para os afetos, sem capacidade de ouvir, sem capacidade de nos comovermos, estamos muito mais inclinados para a figuração, no seio da audiência de partidos nazi, em plena explosão não de afetos, mas de pequenas raivas amplificadas pela incapacidade de compreensão.

Que nos entreguemos ao delicioso trabalho de ver os registos do cinema, os documentos da literatura, os belíssimos passos da história da dança, todas as criações dos músicos, a Natureza em suas infinitas manifestações, pois a humanidade brota do que mastigamos, mastigamos e mastigamos, durante a contemplação dessas obras atravessadas pelo amor e pela sinceridade (até a do poeta fingidor).

Cumprida a parte dessa etapa que cabe à literatura, conseguiremos ouvir alguém como o poeta João Cabral de Melo Neto? Veio-me à cabeça um poema dele, Tecendo a manhã, depois que eu me lembrei de um outro poema, tristonho, de Carlos Drummond de Andrade (“Sentimento do mundo”: Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo). E qual foi o motivo de a ele chegar? A ideia de que, depois da noite, havemos de reverenciar a manhã, mesmo que ela seja de uma profunda ressaca moral. Depois do eu e da sede de vitória, resta a nossa admiração pela força de todos e pelos primeiros passos dos que foram vencidos. É o que eu sonho, como Janusz Korczak sonhou, munido (também ele) de poesia, de ciência e de bons e pacientes métodos. 

Tecendo a manhã
1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

© 2022 Guimarães, agora!


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